São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994
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Democracia e ajuste fiscal

ANTONIO KANDIR

A chamada fase um do Plano FHC está prestes a encerrar-se, embora surpresas ainda possam vir pela frente. Ao longo de todo o processo de negociação do ajuste, as atenções dos analistas econômicos têm convergido para o conteúdo das matérias em exame e o resultado fiscal correspondente.
Não poderia ser de outro modo. Nem por isso é fútil avaliar as características do processo de negociação do ajuste em si mesmo. Muito ao contrário, ao menos para os que acreditam nas virtudes da negociação política e do regime democrático.
Se o ajuste fiscal indica a possibilidade real de cumprir a meta de zerar o déficit público, o que dizer da mecânica da negociação e do comportamento dos atores nela envolvidos? Há mais vícios ou virtudes na estratégia escolhida pelo ministro Fernando Henrique e na atuação das lideranças do Congresso? As virudes, se existem, indicam evolução favorável em direção a um sistema político mais maduro e responsável?
Visto dessa ótica, penso haver vários pontos positivos a ressaltar na negociação do ajuste fiscal.
Em primeiro lugar, houve aceitação do pressuposto estabelecido pela equipe econômica: a necessidade de zerar o déficit operacional. Sinal de que as lideranças políticas entenderam a importância do equilíbrio orçamentário, no quadro atual das finanças públicas, para o sucesso de qualquer plano de estabilização.
Em segundo lugar, a decisão firme e acertada de criar o Fundo Social de Emergência expõe o ponto nevrálgico do desequilíbrio dos fluxos fiscais: o excesso de vinculações e a divisão de receitas e atribuições estabelecidas pela Constituição de 1988. A provável aprovação do Fundo pelo Congresso, ainda que em versão diferente da original, que previa retenção de transferências para Estados e municípios, indica percepção do problema fiscal da União por parte das lideranças políticas e autoriza esperança de que avanços podem ocorrer nessa matéria, na revisão constitucional.
Em terceiro lugar, a insistência da equipe econômica em enviar ao Congresso um orçamento que não fosse simplesmente "para inglês ver", e a disposição posterior de negociá-lo às claras e à exaustão, representa outra mudança importante. Importante na medida que permite tornar o Orçamento instrumento público relevante na decisão acerca dos gastos do governo.
Vale insistir nesse ponto. O processo de negociação parlamentar do Orçamento é crucial para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática. É por meio da disputa recorrente para definir onde o Estado deve gastar os recursos arrecadados do contribuinte que se fortalece a esfera pública de deliberação e os partidos definem seus perfis perante o eleitorado e afirmam-se enquanto agentes co-responsáveis pelas decisões do governo.
Se o controle de despesas na boca do caixa, prática comum, substitui a negociação pública para aprovação de um orçamento que não seja simples faz-de-conta, então ficam comprometidas as chances de amadurecimento do sistema político e abre-se o campo para o arbítrio e o favorecimento, às escondidas da opinião pública. A opção da equipe pela alternativa mais difícil, favorecida pelo escândalo do Orçamento, merece assim reconhecimento, como contribuição à consolidação democrática.
Por fim, registre-se o envolvimento pessoal do ministro da Fazenda nas negociações com o Congresso. Cabe aqui um juízo de fato e outro de mérito.
O juízo de fato prende-se à evidência de que, à falta de liderança política do governo no Congresso, não restava ao ministro outra opção senão fazer o que fez. O juízo de mérito diz respeito à ruptura que promoveu com o padrão autoritário de colocar-se acima e à distância do Congresso, inaugurando um estilo de se fazer política econômica mais apropriado a uma sociedade madura e democrática.

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