São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994
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Como posso esquecer um time desses?

ALBERTO HELENA JR.
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A última vez que esse time entrou em campo foi um vexame. Tomou uma goleada de 6 a 1. Isso foi há mais de 30 carnavais. O Chico ainda estava compondo "A Banda" e o Vandré escondia a "Disparada" como um tesouro, a fórmula secreta da bomba que iria explodir bem no coracao da cultura popular brasileira, como gostávamos de chamar as canções e os sambinhas que perpetrávamos naquela época de tamanha ingenuidade, que supúnhamos que aquele mundinho corrupto e egoísta se esfacelaria diante de uma sextilha e um acorde dissonante.
Foi nesse clima que aquele time caiu na armadilha peparada pelo cidadão Antônio Pecci Filho, mais conhecido como Toquinho. Com aquela cara de eterno menino, sorridente e sedutor, Toquinho atraiu meu time para seu campo de jogo, uma reles mesa de jantar envernizada, plantada no centro de uma sala de casa típica de classe média na divisa da Barra Funda. Meus craques, acostumados com a amplidão e a textura mais resistente dos campos armados sobre tacos encerados do chão dos velhos sobrados do Brás, sentiram-se, claro, inibidos, e foram presa fácil daqueles 11 anões traiçoeiros comandados pelos dedos de Toquinho.
Desde então, nunca mais os vi. A caixinha de papelão que lhes servia de permanente concentração, desde os meus quatro ou cinco anos, sumiu nos desvãos deste desmazelo que alguns chamam de vida. Mas eu nunca me esqueci do meu time de botões. E, ainda ontem, tentava escalá-lo no campo da memória, que fica ali suspenso ente a vigília e o sono.
Parte desse time herdei do primo Nenê, o Heitorzinho, um galalau de quase dois metros de altura, craque do saudoso Estrela do Brás, onde atuava em várias posições. Parte colecionei pacientemente nos brechós da vizinhança ou nos vestidos, mantôs e capas da minha mãe. Era, modestamente, um timaço.
O goleiro, uma massa intransponível de bacalite verde, preso a uma haste de arame, foi batizado de Oberdã, em homenagem ao imbatível arqueiro palmeirense dos anos 40. A dupla de zaga, dois botões alvinegros, altos, maciços, seguros, mas ágeis, eram Savério e Mauro, a bequeira tricolor do bi 48/49. Bauer, um botão cinzento, largo e versátil, formava a linha média com o contido e altamente técnico Rui, amarronzado e fino, e a lâmina negra de longos disparos e extrema elegância, Ivã, como o lateral santista.
O ataque era simplesmente arrasador: Friaça, um ponta rajado, cinza e branco, pequeno, veloz e dono de um chute traiçoeiro, autor de vários gols olímpicos ao longo de sua gloriosa carreira; na meia- direita, Gonzales, também acinzentado, porém mais encorpado e irrepreensível nos passes à meia distância, como o mulato argentino que passou pelo Palmeiras e Flamengo na época: Baltazar, implacável de cabeça, era o centroavante, enquanto na meia-esquerda o pequeno, branco e obreiro Remo preparava as tramas mais bem urdidas de que se ouviu falar nos campos de bola de papel prateado. Na ponta-esquerda, um prodígio de concepção em designer e de ação física. Teixeirinha tinha o formato de um capacete inglês bege e jogava colado à linha lateral do campo. A vinte, trinta centímetros da bola deslizava em sua direção com a rapidez e a precisão de um átomo. Disparando em direção à linha de fundo tocava a bola, primeiro, com a aba, levantando-a imperceptivelmente, para depois chutá-la com a copa abaulada e alta. Isso conferia tal veneno ao disparo que não era incomum a bola entrar no ângulo oposto do goleiro, num irreverente desafio às leis da geometria e da física.
Me digam, como posso esquecer um time desses?

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