São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994
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Virada na música de Nono revela compositor refinado

AUGUSTO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na década de 50, causaram grande impacto nos meios artísticos a imprevista conversão de Stravinski ao serialismo e a revelação de seu devotamento a Anton Webern, ao qual ele então proclamou "o justo da música". A polarização entre Schoenberg e Stravinski dividira, na primeira metade do século, a música moderna em dois partidos antagônicos, a tal ponto que John Cage chegaria a afirmar que, ao iniciar-se como compositor, viu-se na contingência de escolher entre os dois grandes mestres (ele optou por Schoenberg, de quem veio a ser aluno).
Não importa aqui aferir o valor das composições seriais de Stravinski, para alguns meros exercícios de estilo, elegantes e rigorosos; para outros, um novo salto qualitativo na obra caleidoscópica do inquieto compositor russo-franco-americano. No mínimo, a derradeira guinada stravinskiana foi uma leitura crítica que lhe permitiu digerir a evolução da linguagem centro-européia e dialogar com a renovação operada nos anos 50 por alguns dos maiores compositores da geração afluente, como Stockhausen e Boulez. Superando dialeticamente a antinomia que outros (como Adorno) haviam sido incapazes de resolver, Boulez, de resto, num ensaio memorável –"Strawinsky Demeure" (Stravinski Permanece), de 1953–, colocara o conflito sob novo enfoque, perfazendo a necessária síntese dialética, ao localizar na complexidade das células rítmicas de Stravinski (o da "Sagração" e da fase russa especialmente) a contraparte revolucionária da renovação morfológica e sintática do vocabulário musical efetivada pelo Grupo de Viena (Schoenberg, Webern, Berg).
Anton Webern, como se sabe, morrera em 1945, no pós-guerra, assassinado pelo tiro afoito de um soldado norte-americano, sob a indiferença universal. Através do estudo da obra de Webern –aquele, dentre os vienenses, cuja obra, pela clareza e distanciamento, mais se afeiçoava às concepções musicais de Stravinski– pôde este redirecionar o seu caminho e, afastando-se definitivamente das piruetas regressivas do neoclassicismo, reencontrar, com nova metodologia e nova liberdade de linguagem, o que havia de melhor em sua própria obra.
Não sei de nenhum outro caso de virada tão radical e consequente de direções artísticas como o de Stravinski, salvo talvez o que me foi dado recentemente identificar na obra do compositor italiano Luigi Nono (1925-1990), que figurou na primeira linha dos protagonistas da Música Nova, em Darmstadt, ao lado de Boulez e Stockhausen e dos seus compatriotas Bruno Maderna e Luciano Berio.
O caso de Nono, sem dúvida menos espetacular, devido à menor repercussão do compositor fora dos círculos especializados, tem características únicas no cenário da música moderna. Muitos compositores de formação elaborada, até dodecafônica, como aquele medíocre discípulo de Schoenberg, Hans Eisler, que a má-consciência tentou inutilmente promover a primeiro time, sentiram-se tocados pela vontade de expressar em obras musicais o seu engajamento político, geralmente em prejuízo da qualidade estética.
Nenhum, como Nono, membro do Comitê Central do Partido Comunista Italiano desde 1952, foi capaz de equilibrar a tal ponto a consciência política e o rigor estético. Em se tratando de música, o mais abstrato dos gêneros artísticos, a receita do engajamento termina invariavelmente por impor duas condicionantes: o apelo à retórica verbal para dar conta da "mensagem" (que nunca está na música); e a simplificação da linguagem para viabilizar a suposta comunicação com as audiências (supostamente largas). Duas imposições que, em raros casos, deixam de afetar a integridade do trabalho artístico. O rigor compositivo de Nono, porém, jamais lhe permitiu fazer concessões estéticas ou vulgarizar a sua música. Mesmo quando recorria a slogans ou textos políticos, não se pode dizer que tenha barateado o discurso, pois o radical tratamento musical ou eletrônico a que submetia as palavras, neutralizava, por assim dizer, o seu apelo retórico e muitas vezes perturbava até mesmo o seu entendimento imediato.
É o caso de "Il Canto Sospeso" (1956), para três solos vocais, coro misto e orquestra, obra que mereceu minuciosa análise de Stockhausen na histórica revista "Die Reihe" (n.º 6, 1960) e na qual Nono utiliza fragmentos de cartas escritas por membros da Resistência antes de serem executados. Da "ópera" "Intolleranza 1960", com um libreto de Angelo Ripellino misturando citações de Eluard, Maiakóvski, Sartre e Brecht e slogans históricos. De "A Floresta é Jovem e Cheia de Vida" (1966), para soprano, vozes, clarineta, pratos de cobre e fita magnética, em que Nono colageia textos de um guerrilheiro do MPLA, de Lumumba, Fidel Castro, operários norte-americanos e italianos. Ou de "Non Consumiamo Marx", música eletrônica atravessada por slogans encontrados nos muros de Paris (como o próprio título) e ruídos dos combates de rua gravados por ocasião da rebelião estudantil de maio de 1968.
Certamente por causa da intransigência do tratamento sonoro que deu às suas músicas vocais, apesar da solidariedade dos temas e dos textos que as caracterizaram, Luigi Nono não logrou aumentar a sua comunicabilidade, e elas acabaram se tornando até menos conhecidas e divulgadas que as dos seus pares, Berio, Boulez, Stockhausen. Ele ficou identificado, no entanto, como protótipo do compositor exemplarmente engajado, ao longo de toda uma vida de composição dentro das correntes musicais mais avançadas do nosso tempo. Como escreveu Paul Mefano ("Musique en Jeu", n.º 2, 1971) sua obra explicita o paradoxo de "dar consciência à tragédia humana a partir de uma arte sem concessão alguma, em seu mais alto nível."
Nada mais surpreendente, portanto, que travar contato com as últimas criações de Nono, que não parecem guardar qualquer afinidade com seu ideário anterior. Refiro-me às composições "A Carlo Scarpa, Architetto, ai Suoi Infiniti Possibili" (1984), "No Hay Caminos, Hay que Caminar...", "Andrej Tarkovskij" (1987), "La Lontananza Nostálgica Utópica Futura" (1988-89), "Madrigal para Mais 'Caminantes"' com Gidon Kremer, violino solo, oito fitas magnéticas, de oito a dez estantes e "Hay que Caminar So¤ando" (1989), para dois violinos, todas elas registradas em disco após a morte do compositor, ocorrida em 1990. As duas primeiras com a Orquestra Sinfônica de Baden-Baden, sob a direção de Michael Gielen (CD Audivis Astrée E 8741, de 1990). As demais, integrantes do CD 435 870-2, da Deutsche Grammophon, editado no ano passado, tendo como intérpretes os violinistas Gidon Kramer e Tatiana Grindenko.
Há 20 ou 30 anos atrás, era muito diverso em nosso país o repertório das casas de disco. Em algumas delas encontravam-se as últimas novidades em matéria de música contemporâea. Em 1952, eu, Haroldo e Décio compramos na loja Stradivarius, na av. Ipiranga, em São Paulo, as primeiras gravações em LP de Webern, Schoenberg, Varése, Cage. O sofisticado proprietário da Stradivarius, Nagib Elchmer, acentuava, à época, no número 1 (e talvez o único) da revista de mesmo nome, por ele editada, que o Brasil era o segundo importador de LPs dos EUA e o quarto país a fabricá-los no mundo. Podia-se até mesmo, com alguma facilidade, importar discos individuais nessas casas.
Assim obtive os registros, hoje raros, de momentos mágicos como a ópera "Villon" de Ezra Pound e "Four Saints in Three Acts" de Virgil Thomson e Gertrude Stein. Hoje, é como se um furacão tivesse varrido as estantes de música erudita das casas de discos. Além de ópera italiana e do mais surrado repertório do legado romântico e clássico, só escombros erráticos da grande música medieval e renascentista e migalhas do presente, a despeito de os catálogos internacionais estarem repletos de novos registros da música do nosso tempo.
Tal situação coloca o Brasil na posição de um dos países mais atrasados do mundo em informação musical. Nesse quadro, fica difícil a avaliação de uma obra complexa como a de Luigi Nono, quase toda ela ausente das prateleiras nacionais e mesmo escassa nos catálogos internacionais, nos quais não se vêem disponíveis obras relevantes como "Il Canto Sospeso" (1956) e as óperas "Intolleranza 1960", "Al Gran Sole Carico d'Amore" (1975) e a mais recente "Prometeo" (1984).
Contudo, mesmo com esse "handicap", faltando-me acesso a alguns ítens importantes da musicografia de Nono, arrisco-me a estas conjecturas, movido pela funda impressão que me causaram as suas últimas obras e pelo desejo de dar notícia delas. Agradeço a Aldo Brizzi, jovem maestro e compositor italiano, especialista na música de Giacinto Scelsi, e ao crítico J.Jota de Moraes, a ajuda que me deram, suprindo as omissões da minha discoteca, quanto a outros ítens.
Chama logo a atenção o fato de tais obras serem apenas instrumentais, notabilizando-se pela ausência (a não ser em mínimos fragmentos reelaborados em estúdio) da fala ou do canto. Estes ocupam lugar proeminente na criação de Nono, um "obcecado pela voz humana", como notou Mefano.
Na verdade, essa retomada da música pura, fazendo lembrar as primeiras especulações de Nono como as "Variazioni Canoniche" (1950) e "Polifonica- Monodia-Rítmica" (1951), surge logo após um dos mais notáveis experimentos vocais do compositor, a ópera "Al Gran Sole Carico d'Amore" (1975), cujo título provém significativamente do poema de Rimbaud, "Les Mains de Jeanne Marie" e que Nono propôs como "o repensar ideal de um fato fundamental da luta de libertação da classe operária e do movimento de libertação em geral –a Comuna de Paris". Um ano depois, ele veio a criar "...Sofferte Onde Serene...", para piano e fita magnética, interpretada por Maurizio Pollini –estranhíssima composição, a começar pelo título reticente, e que se revelaria um marco na reviravolta musical do compositor veneziano.
Diga-se desde logo, que as "óperas" de Nono pouco têm a ver com a ópera tradicional ou con as facilidades do "bel canto". Nono é, antes, um autor de "antióperas", peças vocais que incorporam a teatralidade, mas onde a severidade compositiva, a manipulação não-ortodoxa dos textos, em colagens fragmentárias, e a desconstrução da fala e do canto, pulverizados pelas técnicas eletrônicas, afastam qualquer aproximação com as convenções do gênero.
Mas o fato é que num autor para o qual a palavra e voz tiveram tanto significado e se tornaram, além de vetores da composição, um campo tão fértil de especulação sonora, causa espécie esse radical abandono, que assume as proporções de uma verdadeira renúncia, ainda mais acentuada pela natureza dessas últimas peças instrumentais. É que todas elas têm em comum a extrema abstração, a ausência de referentes, mesmo compositivos, como o modalismo ou a série, e o direcionamento para as perquirições ligadas à microestrutura, ou seja, à materialidade do som em si mesmo, representada antes pelas formas inusitadas de ataque e produção do som e pela exploração da dinâmica e da timbrística, espectralizadas pela filtragem eletrônica, do que pelas articulações melódicas, harmônicas e rítmicas da sua macroestrutura.
"...Sofferte Onde Serene..." (1976) se desenvolve como um diálogo entre o piano ao vivo de Maurizio Pollini e a sua reelaboração em fita magnética, explorando-lhe as ressonâncias percussivas, da dinâmica da digitação e dos diferentes ataques de som até as vibrações dos pedais.

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