São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994
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Niemeyer rebate seus críticos e defende o triunfo da beleza

SILVIO CIOFFI
EDITOR DE TURISMO

"Esse prefeito do Rio é inepto, é péssimo, deveria ter me consultado sobre a ampliação dos camarotes do Sambódromo". A bronca é do mais conhecido e polêmico arquiteto brasileiro. Aos 86 anos (completados em dezembro), Oscar Niemeyer protesta contra o que chama de desrespeito ao direito autoral –a decisão da Prefeitura carioca de erguer estruturas metálicas originalmente não previstas na Passarela do Samba. "Quero meu projeto correto justamente agora, no Carnaval", diz ele.
Com a autoridade de quem construiu na França, Itália, Portugal, EUA, Venezuela, Alemanha, Israel, Líbano, Argélia, Congo e Gana –para mencionar alguns países–, Niemeyer é uma dessas figuras que aprendeu a lidar com a controvérsia. Muitos de seus projetos foram duramente combatidos e mesmo hoje há quem ache falta de árvores no Memorial da América Latina (SP) e defeitos na arquitetura de Brasília (DF). Com a mesma fala pausada, o arquiteto que Le Corbusier dizia ter "as montanhas do Rio nos olhos" explica sua obra, defende suas idéias comunistas, fala de seus artistas preferidos e de seus amigos.
A entrevista que se segue é um resumo de conversas mantidas nos últimos meses. A primeira delas aconteceu no final de novembro, na cobertura do edifício Ypiranga, um velho prédio da avenida Atlântica, em Copacabana, onde, nos últimos 30 anos, Niemeyer trabalha e, nos finais de tarde, recebe os amigos. A última conversa, mais nervosa do que de hábito, mas igualmente cordata, foi mantida por telefone, minutos antes do fechamento dessa edição. Foi aí que o maior arquiteto brasileiro investiu novamente contra as arquibancadas metálicas do Sambódromo: "Sou contra tudo o que é provisório".
*
Folha - Vamos falar um pouco da sua infância, do seu avô Ribeiro de Almeida, da casa nas Laranjeiras, de como era o Rio de Janeiro?
Niemeyer - Meu avô Ribeiro de Almeida nasceu em Maricá, Estado do Rio. Meu avô Niemeyer eu não conheci. Ele foi juiz de direito em Maricá. Depois foi para o Rio e moramos juntos até me casar. Ele se tornou ministro do Supremo, e nossa casa era muito frequentada. Nesse momento em que está todo mundo se delatando, a lembrança dele é muito boa para mim. Era um sujeito correto. Morávamos numa casa que foi feita quase para minha mãe. Ele ficava embaixo com os dois filhos e no andar de cima ficávamos nós; eu, minha mãe, meu pai, meus irmãos. Éramos seis.
Tive uma meninice muito feliz. Meu avô não era rico –e uma coisa que me agrada é que ele morreu e deixou só uma casa hipotecada, depois de ser ministro do Supremo muitos anos. Vivíamos bem e lembro da casa grande, da sala de jantar. Lembro que tinha dois pianos, um no hall de entrada e outro na sala de visitas. Minha mãe cantava, minhas irmãs tocavam piano, eu jogava futebol na rua, cada um timha um "ofício". Morávamos perto do Fluminense. Fui para o Colégio dos Padres Barnabitas e quando me lembro da família, lembro de como resisti a essa idéia da religião católica. Meu avô tinha missa em casa, minha avó abria a janela da sala e os vizinhos vinham. Nunca acreditei nessas coisas porque achei um mundo tão injusto, tão falso e o ser humano tão frágil... Quando entrei para o Partido Comunista, anos depois, esse era o meu caminho natural. Minha mocidade de rapaz de 21 anos, era o Fluminense, o Clube de Regatas, o Lamas, onde a gente reunia e que era nosso escritório. Jogávamos bilhar, batíamos papo, íamos para a zona da Lapa, para os cabarés do tempo antigo. Depois me casei e a vida mudou. Meu pai tinha uma tipografia. Cheguei a trabalhar com ele. Gostava de desenhar –e foi o desenho que me levou à Escola de Arquitetura.
Folha - O sr. já era casado quando entrou na Escola de Belas Artes?
Niemeyer - Já. Quando casei estava ajudando meu pai e tinha uma prima com uma casa, já uma senhora. Vivíamos do aluguel da casa dela. Eu trabalhava de graça com o Lúcio Costa. Queria aprender. Como me disseram que o escritório do Lúcio era o melhor, foi lá que fui trabalhar. Fiquei lá dois anos, até me formar.
Folha - Dos tempos de boemia carioca o que o sr. lembra?
Niemeyer - Ah! lembro da Lapa, da zona do meretrício, do cinema na av. Rio Branco. Lembro que me incomodava muito, na orquestra do cinema, um velhinho que tocava violino. Ficava com pena dele, um sujeito velhinho ter que ficar distraindo as pessoas. Depois, a gente pegava o bonde, saltava na Lapa e ia para os cabarés... Havia um ar de vadiagem, de malandragem, de briga naquela área que era agradável. Depois voltava-se para o Lamas. Quando tinha que acordar cedo o garçom do Lamas telefonava para minha casa. E assim foi... até me casar.
Quando entrei para a Escola de Belas Artes, sabia pouco fora da arquitetura, como todos os colegas. O arquiteto é muito preso ao assunto da arquitetura. Parece que a arquitetura é suficiente. Mas o fato é que a arquitetura e outras culturas se entrelaçam. Lembro que conversava muito com o Rodrigo Mello Franco de Andrade. Quando falo das pessoas que tiveram influência na minha vida de homem, lembro sempre do Rodrigo, que não era arquiteto. Ele era diretor do Patrimônio Histórico. Fui trabalhar lá uns tempos e ele sempre me animava: você precisa ler os clássicos, os portugueses antigos. Fui me interessando e li muito.
Foi muito útil para minha vida profissional: quando os projetos são aprovados é mais pelo texto –de arquitetura ninguém entende. O Juscelino mesmo: eu mostrava o projeto e antes de ver, ele já dizia: formidável! Era meu amigo e tinha confiança no meu trabalho. O Gustavo Capanema fazia a mesma coisa. O que conta mesmo é o texto, explicado, bem feito. Na França, quando eu apresentei um projeto grande para a Renault, me lembro que o presidente da empresa prendia as plantas na parede à medida que lia o texto. Quando acabou de ler, estava aprovado.
Folha - O sr. acha que o meio é menos importante do que a herança genética?
Niemeyer - Acho que o meio tem influência, mas não é tanto assim. Às vezes o sujeito se compõe diante da vida, ele adota esses princípios todos que a sociedade obriga, mas um dia esse aparelho de contenção não funciona e ele se revela.
Folha - Quando o sr. conheceu o Gustavo Capanema e o Le Corbusier?
Niemeyer - Primeiro conheci o Lúcio. Depois foi o Rodrigo, que foi muito bom para mim, um sujeito que me obrigou a me informar. Depois foi o Capanema. Considero o período do Capanema como o da Semana de Arte Moderna de São Paulo, porque no governo dele houve muita abertura para a liberdade da criação. Era um sujeito muito bom, honesto, decente.
Folha - O prédio do Ministério da Educação, no Rio, é de 1936, não é?
Niemeyer - O prédio é de 36. O Le Corbusier estava aqui para fazer palestras e o projeto da Cidade Universitária. Nesse meio tempo, o Lúcio pediu para ele examinar o projeto. E ele fez um outro projeto, linear. Nós colaboramos, como uma equipe que trabalha junto.
Folha - Esse foi seu primeiro encontro com Le Corbusier?
Niemeyer - Sim, mas o Corbusier mais importante foi o dos livros. Sua obra didática é muito importante. Teve influência em todas as gerações e também na minha. Quando ele saiu daqui, me senti mais livre, fazia o que eu bem entendia. Naquele tempo já estávamos no caminho da arquitetura moderna, mas ainda presos a uma porção de princípios, de preconceitos, de modo que, aquela idéia que ele deixou, de que a arquitetura é um coisa de invenção, me libertou.
Quando fui trabalhar na Pampulha me sentia mais à vontade para fazer o que eu queria. Nunca tive muito apreço pelo ângulo reto, que ele defendia como uma coisa essencial. Achava que a arquitetura feita em concreto armado podia ser mais livre. Quando o espaço é maior, o vão é grande, o concreto armado sugere a curva. É uma coisa que surge naturalmente do próprio sistema, do material. Achava também que a nossa arquitetura antiga não era muito nossa... Mas ela tinha esse lado das igrejas barrocas, ricas em suas formas. Quando fiz a Pampulha, era contra o ângulo reto. Achava que representava uma arquitetura mais rígida, mais fria, que o Ludwig Mies van der Rohe tão bem fazia. Uma arquitetura mais para estrutura metálica.
Folha - A Bauhaus nesse tempo era muito importante?
Niemeyer - Era, mas nós a criticávamos. O Le Corbusier disse um dia que a Bauhaus era o paraíso da mediocridade. Eles tinham um estilo, estabeleciam uma série de regras e saindo daquilo estava errado. Mas além do Van der Rohe havia o Walter Gropius. O Gropius era um professor de talento, embora não fosse um arquiteto excepcional.
Folha - O sr. conhecia os dois, o Walter Gropius e o Van der Rohe?
Niemeyer - Estive com o Gropius e ele se revelou um pouco. A gente escuta os mais velhos –mas às vezes eles também falam besteira, não é? Depois que ele visitou a minha casa em Canoas (RJ), ele disse no portão: olha, Oscar, sua casa é muito bonita, mas não é multiplicável. Achei uma besteira: como é que a casa podia ser multiplicável? A casa era num determinado terreno, para ser igual teria que ser noutro terreno parecido. E ela foi feita para mim, com a minha vida mais simples, de arquiteto.
Antes mesmo da Pampulha, quando comecei a estudar, sentia que o racionalismo não fazia sentido. A arquitetura que gosto –e que bem se caracteriza no Memorial da América Latina, em São Paulo– é a que utiliza a técnica em todas as suas possibilidades. Por exemplo, no Memorial tem uma viga de 90 metros. Acho que nunca se fez uma assim. Mas o apoio da viga eu não coloquei onde devia: subi, achei que ficava mais bonito.
Folha - Foi o Gustavo Capanema apresentou o Juscelino Kubitschek para o sr.?
Niemeyer - Ele me apresentou ao Benedito Valladares, que ia fazer um cassino em Belo Horizonte. Fiz o projeto, e aí conheci o Juscelino, que era candidato a prefeito. Nesse meio tempo o Juscelino foi eleito e me chamou. "Oscar, a coisa mudou. Não vamos mais fazer um cassino, vamos fazer um centro de turismo". A Pampulha foi a obra mais importante que fiz, porque foi o início do meu trabalho de arquiteto, quebrando uma série de regras, de preconceitos –o grande entusiasmo da minha geração. Fiz o meu trabalho de arquiteto e o Juscelino mostrou que era um homem livre, de espírito aberto.
Folha - E o Cândido Portinari, quando o sr. o conheceu?
Niemeyer - No Ministério da Educação. Lembro que ele era um desenhista fantástico, que conhecia a técnica mais apurada. O Capanema reviveu algo que havia antigamente e que os arquitetos da Bauhaus tinham esquecido: a colaboração dos arquitetos com os artistas plásticos. De modo que ele chamou o Portinari, o Celso Antônio, o Bruno Giorgi e procurou voltar àquele entendimento, a uma síntese das artes com a arquitetura. Na Renascença, por exemplo, os palácios eram cobertos de pinturas e esculturas. Quando veio a Revolução Industrial e a arquitetura foi obrigada a um caminho apurado com relação à técnica construtiva começaram a aparecer materiais novos. Então, a idéia foi fazer uma arquitetura mais simples –mas com esse defeito. Quando opinei sobre a reforma do ensino na Argélia, sugeri que o arquiteto deveria ter certo conhecimento das obras de arte. Na Pampulha, chamei o Portinari. Quando projetei o Memorial da América Latina chamei os artistas que achava mais adequados para cada trabalho. Fizemos um livro só com as pinturas e esculturas do Memorial. Há uma lei que estabelece que qualquer obra tem que ter uma porcentagem do orçamento para obras de arte, mas isso nunca é atendido.
Folha - E o Bruno Giorgi, quando o sr. conheceu?
Niemeyer - O Giorgi eu conheci há muito tempo. Foi um escultor importante e trabalhou no Ministério da Educação. Era um progressista que se rebelou lá na Itália contra o fascismo. Foi um sujeito muito importante para a escultura no Brasil.
Folha - Quando o sr. escolheu artistas brasileiros para fazer Brasília, se tivesse que escolher um escultor estrangeiro, quem o sr. escolheria?
Niemeyer - O Henry Moore, meu escultor preferido.
Folha - E que outros grandes escultores o sr. mencionaria, o Alexander Calder, por exemplo?
Niemeyer - É outro gênero, mais festivo. O Moore é mais importante. Muito embora o Calder tenha feito uma coisa dele, diferente, como o Fernand Léger na pintura. Uma pintura do Léger você olha sabe que o quadro é dele.

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