São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994
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A moça mal comportada

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Parecia ter 30 anos, na realidade, vim a saber depois, tinha apenas 32. Trazia um livro, sentou-se ao meu lado à beira da piscina, eu lia Santo Agostinho, arrisquei um olho, além das pernas que eram bonitas, havia um livro de Umberto Eco. Passar 15 dias num navio é tolerável, entre outras coisas, por encontros assim, embora Santo Agostinho nada tenha a ver com Eco nem eu com a moça que vim a saber mal comportada.
Ela fugira de casa aos 18, casara-se com um cigano em Trieste, o cigano foi esfaqueado por um búlgaro, ela voltou a Milão, casou-se com um industrial e agora estava indo para o Rio, lendo Umberto Eco e implicando com Santo Agostinho: "Não tenho religião". Respondi que também não tinha. Ela avançou um pouco: "Nunca entrei em uma igreja, nem no Duomo". Respondi secamente: "Fez mal. Também não tenho religião, mas entro em tudo o que é igreja".
Para beira de piscina, o diálogo era difícil. Ela perguntou se eu não saía à noite, nunca me vira nos salões. Disse que não e foi a vez dela me censurar: "Fez mal. Eu vou todas as noites!"
Pois fui naquela noite. Fiquei num canto, escuro e distante. Na pista, vi a leitora de Eco se esbaldando, dançava sozinha, um vestido de seda preto, colante, combinando com a pele tostada pelo sol da piscina. A orquestra tocou um sucesso antigo, "Love Is in the Air" –tempos de discoteca, ela veio em minha direção, querendo me levar para a piscina. Não, nem mesmo se a orquestra tocasse "O Pé de Anjo" ou "Pelo Telefone" eu iria enfrentar a moça tão mal comportada e agora um pouco suada.
Quis tomar fresco lá fora, apoiou-se na murada e ficou olhando a noite. Lá longe, muito longe, as luzes tremiam, últimas luzes da Europa, depois seria o mergulho no grande mar do mundo. De repente, ela tirou do seio uma espécie de bombom, desembrulhou e me ofereceu. Estava meio derretido e morno. Informou: –"É bom, parece marron-glacê!" Provei um pedaço, ela comeu o resto. E nossos olhos se abriram e vimos que estávamos vestidos. Se descobríssemos que estávamos nus eu teria que pagar direitos autorais ao Velho Testamento.

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