São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994
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o coreógrafo da VIOLÊNCIA

GIANNI CANOVA

–Fala-se que há muita violência nos filmes americanos e que é preciso mudar isso. O sr. concorda?
–Penso que Clinton não tem ido muito ao cinema ultimamente. Tem visto poucos filmes. É a sociedade americana que é violenta. Não são os filmes que sugerem a violência. Diante disso, dessa violência social endêmica, é muito fácil jogar a culpa no cinema. Clinton deveria se concentrar para achar uma maneira de tirar as armas das ruas e não do cinema.
–Mas "O Pagamento Final" começa com um tiro...
–Começa e termina com a representação do homicídio do protagonista. Mas a cena é bastante estilizada, rarefeita, quase abstrata: aquilo que me interessava não era representar "realisticamente" um homicídio violento, mas inventar um mecanismo visual que levasse o público a entrar na cabeça de um personagem que se encontra em ponto de morte. O homicídio é apenas um pretexto para experimentar algumas novas soluções de linguagem.
–Quer dizer que o seu cinema não vai direto na chave realística?
–"O Pagamento Final" é todo construído com uma atentíssima coreografia montada sobre um drama violento, feito com a leveza de um balê. Observe a sequência final da perseguição de Al Pacino: é uma longa corrida, dura quase dez minutos, é construída visualmente como uma partitura musical. Começa lentamente, depois acelera, daí afrouxa, depois se cobre de delicadeza de novo e cresce no final. Usamos toda a nossa disposição para render essas impressões de dança e musicalidade.
–De qualquer forma, sempre se trata de um assassino...
–É verdade que o público assiste a um evento cru e violento com a execução de um homem, mas mais que o fato em si espero que seja golpeado pela linguagem com que esse fato é representado. A violência não deriva apenas daquilo que se mostra no cinema, mas de como se mostra.
–Com Al Pacino, o sr. já fez uma outra história de gangster e de sonhos americanos, "Scarface".
–O personagem de Tony Montana em "Scarface" me fez pensar em Ricardo 3.º, de Shakespeare: um homem disposto a tudo para conseguir a riqueza e o poder. O personagem que Al Pacino faz em "O Pagamento Final" me parece um pouco com Macbeth: um homem que tem um encontro com a morte.
–Tony Montana, em "Scarface", era um exilado cubano que vivia o paraíso na América. Em "O Pagamento Final", o personagem Carlito sonha com o paraíso das Bahamas. A América deixou de ser uma terra prometida?
–Apesar de a América ser um lugar onde muita gente sonha viver, apesar da violência, dos conflitos explosivos, das contradições lacerantes, Carlito é um personagem romântico, sonha em ir embora porque sabe que as leis dos gangsters e as da metrópole não permitem que ele seja diferente daquilo que é. Mas a maior parte das pessoas não pensam assim: muitas passam 24 horas do dia diante da TV vendo imagens da America e sonhando com o mito Nova York.
–Carlito é, porém, tomado pela idéia de poder conseguir da vida "uma segunda oportunidade": é uma obsessão muito difusa no cinema americano dos últimos anos.
–É o sonho de recomeçar do zero. De fechar um capítulo e abrir um outro. Como se a América quisesse livrar-se dos próprios erros, de tantos falsos mitos. Mas é somente um sonho. Um daqueles bem difíceis de realizar. Também para o personagem do meu filme, que vê no seu encontro com a morte justamente na estação que esperava fugir para sempre.
–O sr. tem uma particular predileção por esses lugares. No filme "Os Intocáveis", a cena final também acontece em uma estação de trem.
–As estações são os lugares onde a gente se encontra ou se perde. São o ambiente ideal para cenas trágicas ou românticas. Depois, eu amo os grandes edifícios monumentais e os únicos espaços arquitetônicos coletivos da América contemporânea são as estações ferroviárias: são os monumentos contemporâneos das pessoas comuns.
–Os seus últimos filmes eram ambientados na América contemporânea, mas "O Pagamento Final" tem um quê dos anos 70. Também De Palma está se deixando pegar pela síndrome da nostalgia?
–Espero sinceramente que não. Ainda não cheguei àquela idade em que se diz que antigamente as coisas eram melhores. Não me agrada aquele que rimpiangono. Aqueles que dizem suspirando: "Ah! Os anos 70". Não é um bom sinal quando um artista se guarda para dentro. Eu ainda quero olhar para frente. A nostalgia é um pensamento que me dá paura.

DA REVISTA "SETTE" (CORRIERE DELLA SERA)/TRADUÇÃO DE FERNANDA CIRENZA

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