São Paulo, segunda-feira, 14 de fevereiro de 1994
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Cyro e Aracy ensinam o samba de verdade

EDSON FRANCO
DAS REGIONAIS

"Sambistas de Fato" é o nome da coletânea que o selo Revivendo está lançando com as vozes de Aracy de Almeida (1914-1988) e Cyro Monteiro (1913-1973). Em outros tempos, o título do disco seria apenas um justo reconhecimento ao talento desses cantores. Mas hoje, época em que o samba "fake" domina as paradas, o nome é uma provocação.
Em 20 faixas –gravadas entre 1935 e 1948–, o disco mostra como cantores de técnica apurada conseguiram revestir o samba com rigor estético, mas sem perder o rebolado. Algumas das músicas são clássicos que viriam a ser reinterpretados por outros cantores. No que diz respeito à fusão de ginga com elegância, Aracy e Cyro não encontraram concorrentes.
No começo dos anos 30, Aracy oferecia uma opção ao estilo Carmen Miranda, que influenciava as novas cantoras. Em lugar do deboche, Aracy brindava seus ouvintes com um coquetel de trinados nos lugares certos. Com essa técnica, a cantora modulava sua voz e a adaptava a qualquer tipo de samba. Mais do que cantar, Aracy interpretava as letras.
Curiosamente, das dez faixas sob responsabilidade da cantora, nenhuma foi composta por Noel Rosa. E é de domínio público que Aracy foi quem melhor o interpretou. Ótimo. Assim, pode-se constatar como ela era versátil.
Apesar do ritmo acelerado do Regional da RCA Victor em "Se Alguém Sofreu", a cantora dá o tom melancólico da letra ajudada pelo bandolim de Jacob e um solo de clarinete. Arranjos e Aracy se entendem melhor na abolerada "Quando Foi, Porque Foi" –em que a cantora mostra onde Maysa aprendeu a cantar– e no samba-choro "Tenha Pena de Mim".
Letras e andamentos bem humorados não representavam um obstáculo para Aracy. Em "Flauta, Cavaquinho e Violão", ela costura a harmonia com desenvoltura. Nessa faixa, Rogério Guimarães e seu Regional fazem o mais rico arranjo do disco. Com requintes como na citação instrumental do chorinho "Odeon", composição de Ernesto Nazaré. O senão do disco não é culpa da cantora. Em "Não Quero Mais", a gravação embolou as vozes devido à rapidez do andamento e ao número excessivo de instrumentos.
Cyro era um estilista privilegiado. E era também dono de um senso rítmico malemolente, que nenhum terno da Ducal seria capaz de mascarar. Sua caixa torácica emoldurava um vozeirão que se encaixaria sem problemas no canto operístico. Mas por uma virtude de fabricação, o coração do cantor batia no andamento dos ritmos sincopados.
Em "Falsa Baiana", o "cantor das mil e uma fãs" assume um tom didático para aplicar uma descompostura naquela que "entra na roda/e só fica parada/ não canta, não samba, não bole nem nada". Com um belo arranjo orquestral, "Boogie Woogie Na Favela", mostra um Cyro quase debochado comentando o ritmo da moda. E por falar em moda, o samba cantado por Cyro e Aracy mostra que para o samba "fake", a eternidade é uma bastilha inexpugnável. (EF)

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