São Paulo, segunda-feira, 14 de fevereiro de 1994
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Mudança seletiva e ruptura histórica

FLORESTAN FERNANDES

Vivemos um momento de decisão histórica, que está sendo desperdiçado pelas elites das classes dominantes. Tanto os reacionários confessos quanto os conservadores propensos à "mudança modernizadora" dissiparam as possibilidades de desarticular o capitalismo selvagem, adaptando-o às regras impostas pelo "neoliberalismo".
O que preocupa os de cima é a nova situação internacional e suas tendências de trocar a dependência "desenvolvimentista" pelo engolfamento da América Latina e outras partes do mundo na participação em blocos econômicos e as perspectivas de uma globalização tida por "inevitável". O Brasil poderia remar contra a corrente, se existisse um projeto nacional de reformas dentro da ordem, dirigidas a partir de interesses vitais internos.
A ditadura militar não teve fôlego de ir além das mudanças conservadoras, realizadas com o fito de preservar e fortalecer a ordem existente. Os governos que se inscreveram na trama da "transição lenta, gradual e segura" malograram em todas as direções, apesar dos efeitos de demonstração do Plano Cruzado. Pelo que observamos com perplexidade, a rota do governo Itamar reproduz, com poucas alterações, os erros dos dois governos anteriores.
Ele tem a seu favor a justificação de transcorrer em período curto e tumultuoso. Também possui alguns ministros que transcendem o "neoliberalismo" e vêm tentando reformas impreteríveis. Todavia, o carro derrapa. Um político com a envergadura de Fernando Henrique Cardoso repeliu antigos "idola". Contudo, adota medidas de reforço da aceleração dos lucros e do crescimento econômico nocivas aos de baixo e sem uma clara explicitação das "reformas dentro da ordem" que são visadas.
O Brasil condena-se, no terceiro governo pós-ditadura, a incentivar uma política estreita de continuidade prolongada (secular) e a absorver o tipo de dependência nascido da instrumentalização do Estado, da ciência e da tecnologia utilizada pelos países centrais, suas empresas gigantes, conglomerações e globalização.
A chamada centro-esquerda malogrou teórica e praticamente, pela muita água que deixou que colocassem em seu vinho e por sua timidez diante da truculência das elites das classes dominantes.
Repõe-se, assim, o dilema social nacional. Ou ruptura histórica ou ritmos históricos que repetem o passado no presente, fazendo deste um prisioneiro de interesses econômicos, culturais e políticos exclusivistas e tacanhos.
Para enfrentar com êxito as exigências da situação, o Brasil precisa autodeterminar-se, dentro do capitalismo ou contra ele, e assumir a ruptura histórica tão temida pela minoria de privilegiados ou quase privilegiados.
Até este instante, o único partido que suscitou, através de programas de governo, o desencadeamento pacífico de tal ruptura histórica foi o PT, com o apoio de partidos aliados. Recebeu estigmatizações depreciativas, de que é "atrasado", "radical" e "inexperiente". Mas está ousando e poderá demonstrar, se chegar à vitória, que dispõe de força suficiente para cortar o nó górdio da entrevação do Brasil.

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