São Paulo, segunda-feira, 14 de fevereiro de 1994
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Sobre a fogueira

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA – O título selecionado remete o leitor a um outro tipo de festa popular, bem diferente do Carnaval. Falamos dos festejos de São João, época em que as mulheres, metidas em vestidões, escondem até a última nesga de carne.
Enganam-se, porém, os leitores que imaginam-me disposto a provocar o diabo ou o santo. Há o tempo do samba e o da quadrilhas. Misturar as duas danças seria rematada tolice. Uma bobagem à qual jamais nos atreveríamos, sob pena de negarmos a essência do brasileiro. Segue-se hoje o compasso ditado por satã, sem prejuízo de que amanhã se acompanhe o ritmo prescrito pelo santo.
Mas para que serve a fogueira que evocamos no título se não podemos tomar quentão à sua volta? Chegamos ao ponto. Hoje desejamos falar sobre uma fogueira sem qualquer serventia. Se não tem o descompromisso da festa, ela também não carrega a fatalidade das labaredas da Santa Inquisição ou das chamas que consumiram Joana D'Arc.
A fogueira que hoje nos inspira foi acesa na última quarta-feira, defronte ao prédio do Simpi, o Sindicato da Micro e Pequena Indústria do Estado de São Paulo. Lá estavam também os grandes da Fiesp, numa manifestação que reuniu cerca de 50 pessoas.
Imagine-se que, com tanta coisa a merecer a inclemência das chamas, essa gente decidiu lançar em sua fogueirinha apenas livros contábeis em branco. Repito: só alguns parcos livros em branco. O ato foi planejado para protestar contra a inflação e o excesso de impostos. É justo, muito justo, diria mesmo justíssimo.
Mas é de se perguntar: por que o empresariado não aproveitou o fogo para tostar ali mesmo a sonegação de impostos. Por que não ateou fogo à especulação desenfreada. Por que não queimou o auxílio subterrâneo a campanhas políticas? Por quê? Por quê?
Que a inflação é alta, não há dúvida. Também é verdade que há impostos demais. Mas o empresariado está longe de desempenhar o papel de mocinho nesse enredo de crimes. Só haveria um modo de legitimar as chamas do Simpi. Para que o protesto fizesse algum sentido, para que merecesse respeito, seria indispensável que alguns empresários lançassem a si próprios no centro da fogueira.

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