São Paulo, segunda-feira, 14 de fevereiro de 1994
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Carnavais de ontem e hoje

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – "No grande teatro da vida/ vai haver mais uma vez/ a revista colossal:/ pierrô, arlequim, colombina/ vão a preços populares repetir o Carnaval!" A voz de Mário Reis entrava em todas as casas naquele fevereiro do final dos anos 30.
Meu pai não achava os preços tão populares assim, mas não nos faltavam a caixa com os lança-perfumes, as sacolas de filó cheias de confete e os pacotes com serpentinas. Nossa casa amanhecia enfeitada, papai era hábil em jogar as rodelas da serpentina nos fios da rua, formavam uma teia colorida e compacta, os outros meninos pensavam que éramos milionários, nossa casa era a mais decorada.
Tinha medo do Carnaval. Nos livros que a tia rica mandava da Itália, eu via fotografias do Carnaval de Veneza, papai botava no gramafone o "Vesti la giubba e la faccia infarina. La gente paga e rider vuole qua. E se Arlechin tínvola Colombina, ridi Pagliaccio... e ognum aplaudirà!" A voz de Caruso saía da enorme concha e se misturava com o fio de voz de Mário Reis –eu achava triste.
E havia os blocos nas ruas, tinha pavor das caveiras, lençóis fazendo de mortalha, a máscara com os olhos vasados e os dentes fincados nas gengivas descarnadas. Felizmente, aquilo tudo teria fim: em março eu entraria no seminário, não precisaria vestir a roupa de palhaço nem temer que Arlequim me roubasse a Colombina. Sobretudo, não mais teria aquela dança macabra das caveiras que, diante de nossa casa enfeitada, ficavam mais assanhadas.
Não adiantou muito. Dez anos depois estava de volta, papai vendera o gramafone, o rádio tocava "Chiquita Bacana" e não havia serpentinas nem casa, morávamos em apartamento.
No primeiro Carnaval passei quatro noites no High Life, espremendo-me contra uma tijucana vestida de odalisca e cometi meus pecados de carne –a mesma carne que eu prometera renunciar como prometera renunciar ao mundo e ao diabo. Diabo, mundo e carne que nunca me libertaram do agradável legado da condição humana –garantem que atrás da verde-e-rosa só não vai quem já morreu. Desconfio que é o meu caso.

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