São Paulo, segunda-feira, 14 de fevereiro de 1994
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Pelo fim do apartheid brasileiro

WALDIR PIRES

Não basta fazer o gol. É preciso ganhar a partida. O Brasil precisa do seu projeto nacional –lúcido, vigoroso, urgente. Nosso projeto nacional, democrático, é a qualidade da vida das pessoas, das famílias, da população. Qualidade da vida digna, decente.
O país já teve um projeto, mas sem compromisso democrático verdadeiro, sob a liderança de suas classes dirigentes, que se esgotou faz mais de um decênio. Esse projeto não se obrigou, nunca, a incorporar a população, por inteiro, às suas conquistas. Foi excludente, desde o começo –cresceu a taxas invejáveis, durante quase 50 anos, com o sucesso acumulativo da média de 7% ao ano e foi dobrando o PIB a cada decênio. O país chegou ao degrau importante da oitava economia do mundo. Mas durante todos esse tempo continuou convivendo com uma perversa exclusão de crescentes parcelas da população, na angústia do desemprego, do subemprego, na vergonha da fome, do abandono das crianças, degradando a convivência social.
Em sua última fase, o regime militar foi uma espécie de desestruturação progressiva do edifício social, como se, por ventura, houvesse sentido, ou qualquer mérito, numa economia sem eficácia social. Tempos do general-presidente Médici, que se alongaram, estupidamente, com a conivência das elites, e que ficaram estigmatizados na famosa frase que pronunciou, ironicamente no Nordeste, ao lado de governadores subservientes, e à vista do povo sofrido, fisionomias esquálidas: "A economia vai bem, mas o povo vai mal".
O projeto nacional é, hoje, nosso desafio urgente. Ungido dos valores éticos, que não são apenas os da moralidade pública, inegociável, requisito repubicano do exercício do poder, mas, igualmente, de princípios que viabilizem a construção de uma sociedade livre, solidária, democrática, que restaure a confiança das novas gerações e reacenda as energias do nosso povo.
Um projeto que substitua o buraco das vacilações atuais, a carência absoluta de rumos definidos e nítidos, o ceticismo infecundo e paralisante, por uma firme opção de progresso material e humano, na qual a economia possa jogar seu papel importante, mas vinculada aos valores do trabalho, que impeça a dissipação dos recursos da natureza e o sucateamento da vida humana. Valorização do trabalho e da vida, como inspiração de cada gesto, de cada meta da construção social e econômica.
A estratégia da luta política e do poder passa por essa compreensão abrangente e totalizadora da vida social, pelo duro combate à corrupção vergonhosa, aos oligopólios irresponsáveis que administram os preços e consomem os valores do trabalho, à inflação esterilizante e cruel que concentra a renda e a riqueza, à especulação, para gerar, no fim da linha, a exclusão de um pedaço cada vez maior da humanidade brasileira.
Somos, hoje, um dos "apartheids" mais cruéis do mundo, no limite da ruptura social –guerra civil não declarada na violência urbana, opressão rural nas multidões inconformadas de trabalhadores sem-terra, ameaças da quebra da integridade territorial.
Para reverter esse quadro, cujo desenho dramático se marca na fome de mais de 32 milhões de brasileiros –e a fome é um insulto aos direitos do homem–, é preciso a vontade política organizada da aliança das forças democráticas e populares. No Brasil, para o projeto da democratização da sociedade e do Estado que reverta o atual destino de miséria do povo, nessa terra de Canaã, e lhe assegure o desenvolvimento sustentado, o caminho político é o da unidade das forças políticas não complacentes e não coniventes com essa administração dos negócios públicos que gestou, ao longo de tantos anos, a sociedade perversa dos nossos dias.
As dificuldades brasileiras não são técnicas, são políticas. Os recursos, nós os temos, materiais e humanos. A inflação não é uma questão técnica, é política. É política a questão industrial, agrícola, financeira, econômica, social. A política do governo para todos.
Não serão forças heterogêneas as que poderão organizar a estrada comum indispensável, das mudanças profundas na estrutura da nossa sociedade.
O país quer optar. É preciso haver a opção clara, democrática. Sem escamoteação. A geléia geral produz o cinismo social e político que nos tem atormentado ao cabo desses anos sáfaros, estéreis, de abertura formal. As instituições livres, democráticas, carecem dessa opção para prosseguirem, para se consolidarem. É nosso dever oferecê-la, nitidamente, limpidamente, à escolha dos cidadãos. Com pleno respeito de cada um a cada uma das concepções organizatórias da sociedade e da vida. É o preço e também o valor da democracia –poder reunir mulheres e homens de boa vontade para o difícil combate da mudança.
De mim, não aceito esse "apartheid". As liberdades são irrenunciáveis e elas só existem quando há o mínimo de igualdade para o direito de viver e de sobreviver. O instante dessa decisão é agora –uma nova caminhada. Um tempo novo a recomeçar. A decisão popular, rara, raríssima, num só dia, num só minuto –o cidadão escolhe o presidente da República, o governador do Estado, o novo Parlamento. 1994.

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