São Paulo, terça-feira, 15 de fevereiro de 1994
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O Carnaval é a utopia sexual feminina

ARNALDO JABOR

Da equipe de articulistasFalo, falo e não digo o essencial!" Assim escrevia Nelson Rodrigues, tentando atingir alguma idéia palpável em suas crônicas sempre lapidares. Fala-se, fala-se e não se diz o essencial sobre o Carnaval. E, no entanto, (sempre senti isso, desde pequeno quando vi as primeiras mulheres nuas em carros alegóricos), existe no Carnaval algum mistério não decifrado, um momento que pára no ar como um poema de Rimbaud que diz: "Tudo começou com alguns sorrisos e terminou com uma debandada de perfumes" (cito de cabeça porque o Zé Celso me roubou o livro no Carnaval de 1973).
Existe frase mais carnavalesca do que essa: "No Carnaval a cultura parece virar natureza"?
No Carnaval, há qualquer coisa de "ctônica" nas ruas (Camille Paglia ia adorar o "tríduo momesco", como diziam os antigos cronistas). Há uma lava primitiva entre os corpos que dançam. Não falo de "transgressão" social, não falo de "dessublimação repressiva", não é o eterno "approach" sociológico que fala de um povo "oprimido" que tem de expandir seu desespero, nem do viés antropológico que diz dos escravos se fantasiando de reis.
Há outra coisa no ar, mais forte do que a escrota visão moral que tenta minar a festa por fora ("Carnaval é esculhambação") ou por dentro (o excesso orgiástico que comercializa o vasto panorama de bundas). O Carnaval é uma explosão solar da carne, que não se explica, como não se explica um orgasmo, uma fera, uma devoração, um desejo de matar, um desejo de morrer, um raio na floresta, bichos saindo da água, milênios, vida, morte, evolução das espécies, coisa zoológica, lama, batráquios, serpentes, transações submarinas, ovários, pólens, esperma (falo, falo e não digo o essencial), alguma coisa da animalidade que foge a nomes, a categorias, a costumes.
Olhando as montanhas de corpos que se atiram uns aos outros, nus, em pirâmides coloridas, estamos diante de uma possessão de pagãos, de uma religião sem deus que aparece onde? Em uma guerra, em rituais fanáticos da Índia? Onde existem estas multidões de delirantes se contorcendo com "amok"? Nada a ver com as surubas calvinistas das boates doentias de Nova York que começaram com o "fist fucking" e culminaram na Aids.
Carnaval não é uma esculhambação.
Carnavalização não é sinônimo de escrachamento. Há uma ordem profunda por baixo de tudo. O Carnaval é sim uma grande utopia sexual. Há no ar a tentativa de uma trepada colossal, há o desejo de que haja a foda essencial, o grande encontro da carne viajando através do espaço e do tempo, algo da ordem orgiástica do devoramento de bacantes, de amazonas comendo homens.
Há uma esperança, em cada folião que põe uma camisa amarela e sai por aí, de que haverá um encontro e que o mistério do mundo vai se abrir. É impressionante como o Carnaval mantém o país vivo. Todo ano a vida piora e eu sempre penso: "Este ano o Carnaval vai ser um fracasso". Nada. O Carnaval está sempre lá. Que alegria invencível é essa que só nós temos no mundo?
Como são espantosamente gostosas as mulheres das escolas de samba, as mulheres dos bailes! Onde no mundo inteiro se rebola assim? Que trepada é essa que o povo brasileiro espera e que as mulheres nos prometem numa espantosa dança que já transcende o samba e virou ritual animal, piras sacrificiais, altares de carne? Que povo tem essa avalanche de corpos rolando na alegria, com 50% de inflação ao mês? Corpos rolando tem a Bósnia. Por que esta compulsão de se despir? Há um desejo de indianização, de voltar a uma vida selvagem?
Não há realidade que dê conta desta fantasia. Que mulher está à altura da divindade que elas ostentam no alto de seus carros olímpicos? Se conquistarmos uma daquelas deusas nosso prazer nunca atingirá a metáfora. Haverá a linguagem, haverá a fragilidade, haverá o medo. O cotidiano apagaria a beleza infinita das mulheres desejadas. Então, não é o desejo que quer se realizar. Ao contrário, o desejo não quer se realizar; quer permanecer inconcluso, eterno, flutuante num céu de luzes, porque, se realizado, cairia fatalmente na decepção.
Então, (falo, falo e não digo o essencial) o corpo humano se contorce e compõe uma metáfora de felicidade jamais alcançada, um pacto com o mistério da beleza, com uma arte primitiva, maior, que fala de uma felicidade absoluta.
O Carnaval é uma festa feminina. Os homens se vestem de mulher, os gays caem num paraíso. A visão machista ou comercial (pleonasmo) não deixa ver que o Carnaval é uma grande festa da fecundidade. No Brasil, ficou intocada uma liberdade que organização social alguma vai sufocar. As opiniões moralistas ou calvinistas não deixam ver este óbvio. Este "atraso" é nossa imensa originalidade; o Carnaval explica a recusa do país em entrar passivamente na nova ordem mundial protestante.
Nos Estados Unidos as mulheres são aplaudidas por cortar pênis e jogá-los em terrenos baldios (oh, a solidão de um pau abandonado num capinzal!). Ou então, temos a campanha sexual de Madonna, que na realidade é o desejo sexual do homem apropriado.
Madonna quer ser homem. Ela controla tudo; musculosa, exibe práticas sadomasoquistas de comando de bofes submissos. Madonna é o feminismo pornô. Madonna é um sexo urbano, cheio de retas, de porradas, de violências desreprimidas. Como são curvilíneas nossas mulheres perto daquelas pseudo-orgias dark! Nossas mulheres são doces, pingando mel, não atacando seus homens, mas atraindo-os para um chamego de mucamas, de senzalas.
Como fica terrível o sexo doentio de um Maplethorpe, cheio de mutilados, de dores, de corpos cortados no enquadramento. Porque o sexo nos EUA é violento? Por que Sharon Stone tem de esfaquear o amante? No Brasil, tudo é sado-masoquista, menos o sexo. Aqui, sexo é ligado à dança e à música. Aqui, as mulheres jamais cortariam um pau duro; ao contrário, elas anseiam pela grande tesão brasileira realizada, o imenso pirocão do gigante adormecido entre rios e florestas dominando a inflação e salvando o Brasil, um pirocão com a bandeira brasileira tremulando.
Falo, mas não digo o essencial, porque o essencial está ali, indescritível, deslizando no mistério das avenidas musicais. Mas uma coisa fica clara em fevereiro: o sonho brasileiro é sexual. O Carnaval é o projeto nacional feminino. A sexualidade feminina vai salvar o Brasil.

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