São Paulo, quarta-feira, 16 de fevereiro de 1994
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'It's All True' e 'Tigrero' levam Brasil a Berlim

AMIR LABAKI
DO ENVIADO ESPECIAL A BERLIM

Mesmo antes da exibição de "A Terceira Margem do Rio" (domingo), as imagens brasileiras marcam um forte regresso a Berlim-94. Curiosamente o Brasil é tema de dois documentários sobre grandes projetos de mestres americanos que acabaram interrompidos pelo mesmo jogo mercantil hollywoodiano. "It's All True: Based on an Unfinished Film by Orson Welles" (É Tudo Verdade: Baseado num Filme Inacabado de Orson Welles), de Bill Krohn, Myron Meisel e Richard Wilson, já foi exibido nos festivais de Nova York e Brasília mas só aqui atinge um largo público internacional. Já dá-se em Berlim a estréia mundial de "Tigrero: A Film That Was Never Made" (Tigrero: Um Filme que Nunca Foi Feito), do finlandês Mika Kaurismaki ("Amazônia").
Ainda vai se falar muito, e sobretudo no Brasil, da importância do resgate de "It's All True". Krohn, Meisel e Wilson fizeram um exemplar trabalho de arqueologia cinematográfica. "It's All True" era um elo perdido em ao menos dois campos. Para os estudiosos de Welles, foi "Soberba" e o diretor liberto de "Monsieur Arkadin" e "Othello". Para a historiografia cinematográfica brasileira, matiza-se o salto entre as chanchadas, de um lado, e a Vera Cruz e o Cinema Novo, de outro.
As poucas imagens que restaram do episódio "História do Samba" são insuficientes para por elas mesmas expressar a magnitude da pesquisa musical projetada por Welles. Mas é inegável que há uma linha evolutiva clara que liga o "Samba" de Welles ao "Rio Zona Norte" de Nelson Pereira dos Santos. "Jangadeiros", por seu turno, é no mínimo um dos maiores filmes já rodados no Brasil. Há um visível misto de Eisenstein e Flaherty. A dramatização "in loco" dos jangadeiros remete diretamente a "Noah" e "O Homem de Aran". A foto fortemente contrastada de George Fanto adianta em uma década o classicismo fotográfico da Vera Cruz. Várias sequências profetizam o cinema brasileiro que viria, sobretudo "Barravento".
Já "Tigrero" está em algum ponto entre "Brincando nos Campos do Senhor" e "Cabra Marcado Para Morrer". A história é simples: há exatos 40 anos Samuel Fuller estudou locações na floresta amazônica para um exótico noir ("Tigrero") que seria estrelado por John Wayne, Ava Gardner e Tyrone Power. Nenhuma companhia de seguros bancou o projeto e a 20th Century Fox o cancelou. Com Jim Jarmusch como entrevistador, Fuller revisitou a região em 93 para mostrar aos índios carajás as imagens do estudo de 1954.
Decadência é a palavra para definir o que se vê. Um arremedo de civilização alcançou aos carajás, descaracterizando-os sem maiores vantagens. Os ritos antes registrados por Fuller são agora reencenados de forma mecânica. Até o cinema decaiu: o filme de pesquisa feito pelo cineasta americano consegue imagens muito mais reveladoras e marcantes que o documenário profissional assinado por Kaurismaki. Assiste-se "Tigrero" com interesse - mas a nostalgia é inevitável. (Amir Labaki)

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