São Paulo, quinta-feira, 17 de fevereiro de 1994
Texto Anterior | Índice

Zé Celso faz teatro de massa com 'Mistério'

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

É o renascimento. O que se prenunciava no teatro brasileiro, nos primeiros anos da década, explodiu anteontem no centro de São Paulo. Na terça-feira gorda, de Carnaval, uma apresentação de teatro derrubou finalmente a barreira do público de elite, branco e "highbrow", e terminou com alguns milhares de pessoas dançando e cantando, muitas delas no palco, numa grande massa de atores e público.
Zé Celso, que ficou de fora, depois de ter chegado de uma visita de emergência ao Instituto do Coração, não aguentou e reuniu-se a todos no final, puxando músicas, enquanto jovens subiam ao palco e saltavam sobre a platéia, como em algum festival de rock. Ou em alguma final de campeonato de futebol, pelos gritos, pela excitação da torcida. Ou em algum desfile, verdadeiro, de Carnaval.
Uma outra imagem define a peça. Quando as duas dezenas de atores e atrizes deixaram o palco para ocupar o Solar da Marquesa, o público seguiu em comemoração, brincando e festejando com o elenco nas sacadas, e uma menina de sete anos dominou a ponta do palco, ou da pista, acenando e cheirando cola de um saco plástico. Estava alegre, brincando com amigos, enchendo e esvaziando o saco plástico.
A imagem é a peça. "Mistério Gozoso à Moda de Ópera" é uma versão, é o "primeiro alinhamento" de Zé Celso e do Oficina para o poema "O Santeiro do Mangue", de Oswald de Andrade, publicado há dois anos. É um musical de exaltação do Mangue, antiga zona do meretrício do Rio de Janeiro. De exaltação da miséria, como no caso da menina que cheirava cola, como parte da alegria geral, no fim da peça.
Mas não é só exaltação. Oswald de Andrade e Zé Celso, eles não são tão simples. Não adianta que não serve aos dois a máscara irracionalista que alguns ainda querem criar, volta e meia. Em ambos, a presença maior é a contradição do teatro, como em Shakespeare, não o discurso fácil, maniqueísta. A exaltação da prostituta é acompanhada da contradição maior, que é Stalin.
O ditador comunista é um personagem da peça, não o maior, mas está lá. Também são personagens os jovens estudantes que frequentam o Mangue, mas fazem discurso para acabar com ele, como os antigos membros do partidão e os atuais petistas. Mas também está Jesus Cristo, o Jesus das Comidas, assim como o vendedor dos ícones católicos, que termina como cafetão. Ícones, prostituição, religião, nada escapa.
Ao contrário do que aconteceu nos dias anteriores do "Teatral Paulista", o palco de "Mistério Gozoso" foi montado como uma pista, reproduzindo o Oficina. A pista, idealizada pela arquiteta estalinista Lina Bo Bardi, com Edson Elito e Zé Celso, é o maniqueísmo feito em forma. Ou deveria ser. Na apresentação de anteontem, num pequeno beco a meio quarteirão da praça da Sé e ao lado do pátio do Colégio, a pista foi palco da contradição.
O conflito foi complexo em tal proporção que não havia mais como achar algum maniqueísmo. Talvez, apenas, na aparente recusa em enfrentar uma ameaça mais trágica e poderosa à liberdade sexual: a Aids. No texto, as prostitutas cantam pedindo "o pau nosso de cada noite" e a gonorréia, um retrato algo cômico de sua miséria. Nos tempos que correm, gonorréia é pouco.
Zé Celso poderia ter atualizado o texto para Aids. Não o fez. Fechou os olhos para uma reação antilibertária que está presente, que toma a Aids como desculpa e que resulta em episódios de hipocrisia explícita. Exemplo maior, também ligado ao Carnaval, é o ataque moralista ao presidente da República, porque flertou com uma modelo sem calcinha.
Mas a discussão é menor diante do que "Mistério Gozoso" alcançou. Sobretudo ao mostrar que a festa carnavalesca e a festa teatral têm uma fonte única num Brasil de festas de massa. As quatro mil pessoas que viram e participaram do musical foram guiadas por um Oficina que, através de Marcelo Drummond, como um ídolo pop, e Paschoal da Conceição, como um corifeu clássico, é voltado para as arquibancadas.
Um teatro que abre passagem para Christiane Tricerri apresentar a sua melhor interpretação, num papel que parece criado para ela. Ou que abre passagem para Walney Costa mostrar que merece a fama que tem, dos tempos subterrâneos do Oficina. Um teatro que vai dando forma àquele que é um dos maiores compositores do teatro musical brasileiro: José Miguel Wisnik.
O teatro de Zé Celso, depois de "As Boas", depois de "Ham-let", retomou seu lugar e agora começa a mostrar o que fez nos vinte anos de ócio. "Mistério Gozoso' é o primeiro filho do renascimento. É só o começo.

Texto Anterior: 'Quem É Beta?' é 'Mad Max' dos pobres
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.