São Paulo, quinta-feira, 17 de fevereiro de 1994
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Criar já confiança na nova moeda

ANTONIO KANDIR

É inegável que o governo, e especialmente a equipe do ministro Fernando Henrique, conseguiu uma difícil e importante vitória com a aprovação, em primeiro turno, do Fundo Social de Emergência. Se vier a ser confirmada no segundo turno, a medida praticamente encerrará, com sucesso, a primeira etapa do processo de estabilização.
Conforme cronograma já conhecido, a essa etapa deverá seguir-se a tentativa de incentivar a adoção a mais generalizada possível de um novo padrão de indexação de preços e rendimentos, padrão esse vinculado às cotações diárias de uma unidade de conta já conhecida pelo nome de Unidade Real de Valor.
Quanto mais bem-sucedido esse processo, menos controversa e com maiores chances de êxito será, em seu início, a terceira etapa do processo de estabilização, marcada pela introdução da nova moeda e a inevitável conversão dos contratos ainda denominados em cruzeiros reais (que na lógica do plano, espera-se que sejam em número o menor possível).
A terceira etapa tem sido apresentada como ponto de chegada do processo de estabilização. Não me parece que seja assim. Faço o alerta não por gosto acadêmico, mas com o propósito sincero de chamar a atenção para um equívoco que pode comprometer o êxito do processo de estabilização.
No momento de criação de uma nova moeda, o "xis" da questão está em emprestar-lhe credibilidade. É preciso que as pessoas acreditem que a nova moeda irá definitivamente prescindir dos mecanismos de indexação, que, sob o pretexto de protegê-la, acabam por destruí-la. Pois bem: quais são as condições para que se tenha confiança na nova moeda? O equilíbrio orçamentário em 1994 e a convergência para um mesmo indexador, como etapa preparatória, são condições necessárias, mas insuficientes.
A credibilidade depende de mudanças institucionais que assegurem efetiva separação entre os processos monetário e fiscal e permitam recuperar o crédito do Tesouro Nacional de maneira inquestionável.
Por que introduzir essa questão agora, quando nem sequer se encerrou a primeira etapa do processo de estabilização? A razão não é difícil de ser explicada: dependendo da amplitude e do êxito da revisão constitucional, haverá ou não condições de emprestar credibilidade à nova moeda; quanto ao êxito, o futuro dirá, mas quanto à amplitude da revisão, os congressistas estão prestes a tomar decisões definitivas.
Cabe então o alerta: quem imagina estar contribuindo para o processo de estabilização ao empenhar-se por uma microrevisão, restrita a alguns temas consensuais, está solapando agora as condições futuras de sucesso do plano.
A separação dos processos fiscal e monetário (garantia institucional de que não haverá possibilidade de emissão de moeda ou quase-moeda para resolver problemas de solvência do Tesouro) exige a constituição de um Banco Central independente.
Por sua vez, a possibilidade real de concretizar-se a independência do BC depende do equacionamento do fluxo e do estoque do conjunto de dívidas do Tesouro Nacional. No estoque, é preciso computar as dívidas com fundos sociais como o FCVS (Fundo de Compensação das Variações Salariais) e FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) e o enorme passivo potencial da Previdência, que acabará por estourar, se nada for feito, nas mãos do Tesouro Nacional.
A independência do Banco Central depende de alteração constitucional, quando mais não fosse porque é incompatível com a possibilidade de o presidente da República demitir o presidente do Banco Central a hora que bem entender, como reza a Constituição atual.
A recuperação inquestionável do crédito do Tesouro, por sua vez, depende da possibilidade de o governo vender ativos públicos de valor correspondente ao montante dos passivos do Tesouro Nacional, operação impedida pelas restrições que hoje a Constituição impõe ao processo de privatização. Quanto à redefinição de receitas e atribuições entre os três níveis de governo e a Previdência, não há como avançar, a não ser tópica e temporariamente, sem alterações constitucionais.
Note-se que não há necessidade de decidir agora como, quando e o que incluir no programa de desestatização. Tampouco há necessidade de cuidar de imediato de tornar o Banco Central independente, tarefa que pode ser deixada para o próximo presidente. O decisivo para o êxito da estabilização é estabelecer, na revisão, as condições de um processo de reordenamento financeiro e operacional do setor público que crie expectativa favorável ao novo padrão monetário ao longo do tempo.
A estabilização é um longo processo, cujas condições de sucesso vão-se construindo ao longo do caminho, muitas vezes por antecipação. Espero que congressistas e membros do Executivo meditem a respeito, antes de fazer acordo apressado sobre a agenda da revisão.

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