São Paulo, quinta-feira, 17 de fevereiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A revisão na ressaca

RENATO JANINE RIBEIRO

Enquanto o Congresso revisor arrasta seu difícil início, convém analisar seu clima político. Tendemos, na reflexão política, a valorizar demais os discursos ditos sérios sobre a sociedade, como os da economia e da ciência política. Mas, com todo o respeito por essas duas ciências, devemos lembrar que não se pode refletir sobre o homem apenas mediante as chamadas ciências humanas: é preciso recorrer também às disciplinas próximas, aparentadas, mas ricas e irredutíveis, das humanidades, que funcionam de outro modo.
Porque perdemos com frequência, apostando na ciência, a chance notável de valer-nos da filosofia e da análise literária para dar conta do social. Ensaios nessa direção, quando surgem, significativamente acabam muitas vezes não nas páginas de opinião, porém nas de variedades. Um excelente caso é o do recente artigo de Antonio Callado na Ilustrada, pedindo que Nelson Rodrigues torne a ser apenas um autor teatral, deixando de ser emblemático do país: com essa sagaz observação, o romancista vai mais longe que muito cientista.
Ora, o curioso na revisão constitucional é que ela se inicia acentuando, até um abuso "kitsch" e suspeito, tudo o que são sinais de seriedade. A Constituinte mais democrática de nossa história é rememorada como se fosse um porre homérico, de resultados quase calamitosos, "voltada" –diz, por exemplo, José Sarney– "para o passado". E propõe-se, no lugar da embriaguez, sedutora mas perigosa, do vinho e das sereias, a austeridade. Como se a esperança, a promessa, o desejo de mudar fossem maus, por seus resultados, e contra eles devesse valer a prudência.
O mínimo a dizer, desse elogio da sobriedade, dessa censura à desmedida, é que merece desconfiança. O grande exemplo histórico na área é o da França de 1940, quando o regime conservador do marechal Pétain culpou, pela derrota ante os nazistas, a Frente Popular. O país teria perdido a vontade de lutar, diziam os pró-fascistas, devido à legislação social instituída pela esquerda em 1936: as férias pagas, por exemplo, teriam minado a disposição das pessoas ao sacrifício. É curioso que em certos momentos o conservadorismo tenha de usar desses dispositivos de contenção: sabendo muito bem que está em jogo o desejo, transformador do mundo, e não apenas a ordem vigente.
Não é casual, então, o caráter conservador da revisão. Seus bons momentos se devem a um relator capaz, que corrige, retifica. Mas em seus piores momentos –frequentes– ela propõe eliminar boas inovações, como os dois turnos para o Executivo, que, na verdade, deveriam estender-se a todos os municípios, para garantir a escolha do governante, sempre, pela maioria. É como se, depois da festa cívica que foi a longa Constituinte de 1987-88 –à qual não faltaram emendas de iniciativa popular, caravanas até Brasília, formas, ainda que ingênuas, de pressão das diversas vontades que emanam do povo–, agora fosse o momento de curar o país da ressaca.
Mas esse clima de censura, de cura, de culpas não é mentalmente pobre? Um discurso de sobriedade envolve a revisão, falando-se em podar exageros, em eliminar falhas. Mas basta ler a relação dos temas prioritários para notar sua inanidade. Não há esperança, projeto ou utopia em seu horizonte. Sequer se cogita, nas mudanças aventadas, a reforma agrária, essencial para fazer justiça ao trabalhador do campo, aumentar o mercado interno e conter a degradação da vida urbana.
Um país assolado pela miséria e a pobreza revisa sua Carta Magna sem que nenhum passo real se dê para eliminar tais flagelos. Se 1988 errou em fixar como meta nacional o fim da miséria sem determinar meios eficazes para isso, 1994 parece acreditar só no jogo do mercado e na abertura dos portos para atingir metas que, aliás, nem mais se diz quais são: provavelmente não consta delas a justiça social. A Constituinte descuidou dos meios, a revisão esquece os fins. Isso não é pior? Meios se inventam. Fins, uma vez perdidos, só resta o banal.
Quando muito, deita-se uma migalha a quem ainda crê num futuro qualitativamente melhor: prometeu-se que o capítulo sobre o meio ambiente e os índios não seria prejudicado. Só isso.
Esse quadro é marcado, pois, por uma idéia bem suspeita de seriedade. Que dizer de uma proposta de revisão que se contenta em facilitar a dominação econômica, ignorando o que deveria ser nossa prioriedade zero: a superação da pobreza sob todas as formas, econômica, social, política, cultural? Que esperança ter na mera soma de interesses privados, que se têm mostrado incapazes de gerar um projeto público, uma proposta para o Brasil?
Não há dúvida de que precisamos rever a Previdência Social e a presença do Estado na atividade empresarial; mas o fato de que a maioria conservadora pare nisso é prova de que lhe falta "élan", desejo. Talvez por isso, por lhe faltar vida, ela precise tanto criar demônios a quem acuse pela embriaguez, como se o anseio de justiça, o desejo de mudar o mundo, precisasse ser desqualificado como irresponsável. Mas, dizia Dostoievski, não é trancando o outro como louco que me convenço de minha sanidade mental. Não é desqualificando seus oponentes como irresponsáveis que a direita revisora se provará racional.

Texto Anterior: Nudez não é transparência; Brasil viável; Doença infantil do PT; Descompromisso do PSDB
Próximo Texto: Criar já confiança na nova moeda
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.