São Paulo, sábado, 19 de fevereiro de 1994
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Adeus, Leôncio!

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Era um brasileiro como outro qualquer, tão qualquer que nem Aids conseguia pegar. Antes da doença entrar em moda, ele tentara chamar a atenção dos segundos cadernos e dos cineastas em disponibilidade: fez teatro, uma novela na televisão, comprou sanduíches na barraca do Pepê.
Nos anos 60 foi hare krishna, viu 33 vezes a peça "Hair". Nos anos 70 adotou um codinome e participou de uma passeata no Calabouço, mais tarde abjurou a luta armada e enganjou-se na campanha do verde, andou pelas ruas do Leblon com um cartaz onde se lia: "Tirem as Garras da Amazônia!"
Tudo dava em nada. O jeito foi mudar de vestes e de idéias, arranjou uma bolsa Gucci, comprou a obra completa do Gabriel García Márquez e fez um curso de contenção verbal com o finado Hélio Pellegrino –que também deu em nada: durante o curso, aluno e mestre descobriram que falavam demais e o jeito era continuar falando.
Os anos 80 o encontraram fazendo comida vegetariana, musculação e alongamento, pesquisas no campo da MPB onde pretendia provar a influência do xaxado na rebelde austeridade dos punks.
Apesar de tais e tamanhas atividades, continuava anônimo. Fez então opção mais radical e lúcida: contrair Aids antes que a doença não desse mais notícia de jornal. Usou seringas encontradas nas areias de Ipanema e em vez de Aids contraiu hepatite –doença que não tinha espaço na mídia. Entupiu-se de suspiros e durante 40 dias e 40 noites, viu na TV todos os filmes recomendados pela crítica especializada, especializando-se em coisa alguma.
Curado da hepatite, contraiu infecção alimentar (insinuaram que havia sido um empadão de galinha) e foi assim que Leonel Meirelles (com dois eles) entrou em coma na cama: ditou sucinto testamento, deixando seus discos do Caetano Veloso (fase anterior a "Menino do Rio") para um clube de hemiplégicos. As obras de García Márquez foram doados à escola paroquial do Leme.
Ao descer à campa, ele recebeu a homenagem de um orador de circunstâncias que não sabia ao certo do que ou de quem se tratava. E Leonel Meirelles (com dois eles) recebeu embargada despedida: "Adeus, Leôncio!"

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