São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 1994
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O "sacrifício" para derrubar a inflação

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O "sacrifício" para derrubar a inflação
O Plano FHC parece ter adotado uma corruptela para conseguir a adesão dos setores mais poderosos
Assim não adianta tirar férias! Mesmo sem ter lido jornais durante quatro semanas, o clima continua pesado por causa do famoso "plano" antiinflacionário proposto por Fernando Henrique Cardoso e sua equipe. Na volta, as principais revistas e jornais do país em matéria econômica estão ainda piores que antes. A confusão mental reina nas hostes dos bem-informados e ofusca qualquer possibilidade de racionalidade no pensamento econômico.
Tomemos ao acaso a afirmação, contida num documento de agência especializada, sobre política antiinflacionária: "A decisão de combater vigorosamente a inflação exige muito sacrifício em troca de pouco benefício imediato da reversão de tendência de preços".
O leitor perguntará de quem será o sacrifício e imaginará que se trata uma vez mais dos assalariados e da população em geral, condenada há mais de dez anos a ver deteriorar-se os serviços públicos essenciais e a não encontrar empregos novos. Ilusão!
O "sacrifício" será do governo, que pela linguagem ideológica adotada, é o beneficiário da inflação. Esta visão foi ganhando roupagens teóricas sofisticadas e está agora consagrada sob a forma de "modelos" por algumas das mais reputadas escolas do país.
Situação ideal
O que dizem os "modelos", alguns de consistência lógica duvidosa e outros com premissas falsas e lógica interna dedutiva aparentemente correta? Dizem, em resumo, que com a queda da inflação o governo perde o imposto inflacionário e a "senhoriagem" decorrente dos ganhos com emissão de moeda! Estes modelos foram concebidos para economias com baixa taxa de inflação que permitem aos agentes econômicos manter a "ilusão monetária" e continuar demandando moeda corrente para encaixes monetários, seja por razões de transação, precaução ou especulação.
Nesta situação "ideal" o governo, que tinha o poder legal de emitir moeda fiduciária, podia se financiar com emissão de moeda (senhoriagem) e cobrar um "imposto inflacionário" de todos os agentes que mantinham depósitos ou saldos líquidos em moeda de emissão corrente.
Bancos ganham
É essa a situação brasileira? Longe disso. A aceleração inflacionária e a institucionalidade financeira –que permite manter os saldos líquidos sobre a forma de títulos da dívida pública de curtíssimo prazo com correção e juros altos– fizeram com que ninguém que disponha de uma renda mínima capaz de entrar na ciranda financeira fique com saldos líquidos em moeda corrente. Quer se chamem cruzeiros, cruzeiros reais ou simplesmente reais (quando ocorrer a nova reforma monetária?) todos preferem a moeda indexada e o governo perde a senhoriagem, isto é, a capacidade de financiar-se com emissão de moeda.
Esta passa a ser cobrada pelos bancos e outras instituições financeiras que carregam em suas carteiras (e em depósitos compulsórios junto ao Bacen) títulos da dívida pública com taxas de juros fortemente positivas.
Portanto, ao contrário do que se diz, quanto mais alta a taxa de inflação, pior para o governo e melhor para os bancos, enquanto estes forem capazes de cobrar do Tesouro os juros reais que vigem no mercado monetário, o chamado "open market", em particular em sua forma atual de "overnight".
Quem paga?
Quanto ao "imposto inflacionário", de quem ele é cobrado? Dos pobres naturalmente, que não tem acesso à ciranda, e mais recentemente do próprio governo, já que este pela "nova" doutrina (ou quem sabe velhíssima vestida de outra roupagem) tem de zerar o déficit público. Quanto mais alta a inflação mais a execução orçamentária, guiada pelo critério de caixa e pela meta do déficit zero, tem que cortar gastos em termos reais: salários do funcionalismo do Executivo, infra-estrutura e gastos sociais.
Este corte de gastos permite acomodar a componente crescente de juros, pagos pelo governo aos agentes líquidos e ao setor financeiro. Trata-se de uma senhoriagem às avessas!
Retórica do "sacrifício"
É curioso que o modelo recém-adotado pela atual equipe econômica, que poderia ser chamado de "efeito Tanzi às avessas", esteja também impregnado pela retórica do "sacrifício", que permeia todo o plano, inclusive na peculiar sequência das três fases.
Na fase I, de "ajuste fiscal", os economistas do governo rebatem o antigo conselho de Keynes de que de pouco adianta tentar fazer ajuste fiscal, antes de estabilização, com uma inflação descontrolada. O "criativo" contra-argumento do governo é que os nossos impostos estão bem indexados (anulando o chamado "efeito Tanzi"), enquanto no Orçamento os gastos públicos não estão indexados e portanto agora a inflação, em vez de aumentar o déficit, o diminui automaticamente, pela compressão forçada dos gastos públicos em termos reais.
Esta forma peculiar de ajuste fiscal só tem o pequeno inconveniente de levar a cortes lineares e totalmente arbitrários nos gastos públicos, comprometendo ainda mais a qualidade e a eficiência dos serviços que o Estado presta à população.
Para piorar as coisas, ao mesmo tempo o Banco Central pratica uma política de taxas de juros altíssimas em relação às taxas internacionais, que leva a uma imensa e descontrolada entrada de capitais externos. Para evitar o estouro da base monetária a partir do enorme crescimento das reservas cambiais do país, o Bacen é forçado a lançar títulos da dívida pública. Isso leva a um crescimento explosivo da dívida interna e ao consequente aumento das despesas com encargos financeiros, o que cria a necessidade de mais "sacrifício", mais cortes etc.. Esta é a primeira fase.
Indexação
A segunda fase diz respeito à implantação do URV (Unidade Real de Valor). O pouco que se sabe sobre esta fase é que as tarifas e os salários devem ser convertidos pela "média". Quanto aos preços, consta que a sua conversão será voluntária.
Como fatalmente a inflação em cruzeiros reais vai acelerar nesta fase II, pois a URV representa um aumento no grau de indexação da economia, quem vai sair perdendo são novamente o governo e os trabalhadores, dado que a inflação em URV será igual à aceleração da inflação em cruzeiros reais.
Finalmente chegaríamos, em algum momento no futuro, à fase III, na qual ocorreria a reforma monetária com desindexação e estabilização do câmbio. Nada se sabe no momento sobre como isto será feito.
Cabe aqui apenas ressaltar que, na hipótese desta fase ser bem sucedida, o que se conseguiria seria uma cristalização da distribuição de renda "pós-sacrifício" das fases I e II e, portanto, com perdas nos gastos públicos essenciais, receita das estatais (enquanto estas permanecerem estatais) e da renda dos trabalhadores.
Explicação racional
A sequência de fases recomendável tanto do ponto de vista operacional, quanto do ponto de vista distributivo, seria exatamente a inversa.
Os planos de estabilização bem-sucedidos em geral começam com reforma monetária, estabilização do câmbio e desindexação. Depois, em rápida sucessão, se faz uma política de rendas negociada (já que ambos os lados têm a perder com a desindexação) e finalmente o ajuste fiscal, facilitado pela queda da inflação e retomada do crescimento. Desta forma não só os ajustes ficam mais fáceis como o setor público e os trabalhadores –principais perdedores do processo de inflação alta– saem minimamente protegidos.
Talvez a única explicação "racional" para a nossa peculiar sequência "voluntária" seja a de que não tendo nenhum dos planos anteriores conseguido impor perdas aos setores mais favorecidos e poderosos da sociedade, tenha-se finalmente adotado uma corruptela do famoso provérbio americano. "Se não podes lutar com eles, junta-se a eles" diz o refrão popular, que na nossa versão surrealista pode ser enunciado: primeiro o governo e os trabalhadores fazem "sacrifícios", depois os setores mais poderosos seguem voluntariamente o governo! Assim é se lhe parece...

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