São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 1994
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Moralidade fiscal e constituição tributária

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pagar impostos não é um ato trivial. A diferença básica é o seu caráter compulsório. De fato, a própria palavra diz isso: o "imposto" é aquilo que não é facultativo fazer. A raiz é a mesma do termo latino "impositu", quer dizer, aquilo que é feito aceitar ou realizar à força. Atividades como gastar em consumo, buscar emprego, poupar e investir são ações que partem do indivíduo. Mas o que nos é imposto –os diferentes tributos que incidem sobre as nossas transações– é literalmente aquilo que não se pode escolher.
Tudo isso, é claro, em tese. A impotência do poder é uma das grandes lições do nosso século. Ela é o preço pago pelos poderes que abusam de suas prerrogativas e tentam nos impingir mais do que estamos dispostos a aceitar. Exemplos como o fiasco soviético e a queda do xá do Irã mostram que existem limites para o que se pode impor à revelia da vontade dos indivíduos. A desobediência civil generalizada é o sinal mais evidente de que o limite foi atingido.
Vivendo no Brasil, conhecemos de perto as enormes dificuldades criadas por um sistema de arrecadação de impostos e de gastos públicos que perdeu a legitimidade aos olhos da sociedade. A sonegação, segundo alguns analistas, anda por volta de 40% do valor arrecadado e apenas 3% das empresas visitadas por fiscais da Receita estão em situação regular no cumprimento da legislação. Embora não se possa generalizar esse número para o universo das empresas, o fato inegável é que sonegar tornou-se praxe entre os contribuintes brasileiros.
Pagar impostos é uma norma de conduta baseada em sanções legais. A moralidade fiscal, em qualquer país, depende do grau de adesão dos contribuintes às normas tributárias vigentes. A questão básica é saber o que determina essa adesão. O que nos leva a acatar uma norma de conduta? Por que submetemos nossas ações a imposições externas, mesmo quando estas conflitam com o nosso benefício imediato?
Considere-se, por exemplo, um imposto declaratório hipotético X. A ação fiscalizadora do Estado jamais conseguiria por si só fazer com que X seja acatado. A adesão mais ou menos generalizada dos contribuintes ao pagamento regular de X pode ser atribuída a três fatores básicos: 1) submissão; 2) identificação; e 3) internalização.
No caso da submissão, a adesão à norma se dá por força da ameaça de sanção externa dos infratores. A punição é o preço do crime. Se o governo emprega fiscais de arrecadação; se o não-pagamento de X é punido com multa ou prisão; e se o risco de ser pego existe, então a relação custo-benefício da sonegação pode ser tal que me leve a pagar corretamente o imposto devido. A adesão à norma baseia-se aqui num cálculo racional. Ao mudarem os valores e as probabilidades de ocorrência, altera-se também a decisão do agente.
A identificação é a adesão à norma motivada por um sentimento moral, isto é, pelo desejo de conquistar e manter a boa opinião dos demais. Pago X porque as pessoas a quem prezo e admiro fazem isso e sinto-me bem pelo fato de, como elas, também fazê-lo. O desejo de estar bem comigo mesmo e de comandar o apreço e o respeito dos demais atuam como incentivos ao cumprimento da norma. Como observa o filósofo norueguês Jon Elster, "se a punição fosse apenas o preço do crime, ninguém sentiria vergonha de ser pego".
Finalmente, a internalização é a decisão de acatar a norma com base numa reflexão ética. Pago X porque acredito tratar-se da conduta sã e razoável. X é um tributo justo e estou convencido de que a vida em sociedade requer o respeito a um conjunto de regras de interesse comum. A generalização da sonegação, a partir de um cálculo de cada um sobre as vantagens de fazê-lo, levaria a uma situação na qual todos terminariam sendo prejudicados, seja pela deterioração da infra-estrutura de bens públicos ou pelo descontrole inflacionário.
Seria irrealista imaginar que qualquer um desses três mecanismos pudesse dar conta sozinho do recado. Na ausência de um mínimo de identificação e de internalização, o poder coercitivo do Estado, por mais implacável que seja, não é capaz de sustentar o respeito à norma. E nenhuma sociedade, por mais robusta que seja sua infra-estrutura moral, pode prescindir de um código de sanções para a punição dos infratores. Na prática, portanto, a adesão a normas é motivada não por um ou por outro, mas por uma combinação de submissão, identificação e internalização.
O declínio da moralidade fiscal no Brasil reflete o enfraquecimento simultâneo desses três mecanismos. De um lado, é possível reduzir os índices de sonegação através de uma ação fiscalizadora mais adequada –aumento da probabilidade de punição, julgamentos mais rápidos e maior visibilidade das condenações. O esforço da Receita Federal e dos órgãos correspondentes dos Estados e municípios no combate à sonegação é uma iniciativa louvável e que vem obtendo resultados expressivos na arrecadação de tributos.
Por outro lado, contudo, é preciso ter claro que o problema do declínio da moralidade fiscal no Brasil não pode ser reduzido a um simples caso de polícia (submissão). Melhorar a fiscalização, como vem sendo feito, ajuda, mas isso jamais resolverá a questão básica da falta de uma constituição tributária que seja aceita como legítima pela sociedade (identificação e internalização). A conquista dessa legitimidade exigirá uma ampla reforma do sistema tributário e uma mudança profunda na gestão dos recursos arrecadados.
O ponto básico é que embora a carga tributária bruta no Brasil não seja alta em termos internacionais –devendo chegar ao nível recorde de 27% do PIB em 94–, ela é terrivelmente mal distribuída pela sociedade e incide sobre uma base muito restrita de contribuintes. O vício de aumentar as alíquotas dos tributos existentes e inventar novos impostos emergenciais, como vem sendo feito ritualmente no Brasil há mais de uma década, foi o principal fator responsável pelo declínio da moralidade fiscal.
Sob este aspecto, o ajuste fiscal do Plano FHC é apenas mais uma volta no círculo vicioso dos últimos governos. É injusto e contraproducente tentar arrancar mais impostos do pequeno número de contribuintes que, por honestidade ou falta de opção, ainda se dispõe a pagá-los.

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