São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 1994
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Uma crítica surda e previsível

JOSÉ MARIA CANÇADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma crítica surda e previsível
A gesticulação que agita a resenha de Felipe Fortuna sobre o meu livro, "Os Sapatos de Orfeu" (Scritta Editorial), publicada no "Mais!" de 6 de fevereiro, à página 6-8, está de acordo com o figurino e o modo dominante de comportamento na indústria cultural. Mesmo que o resenhista também tenha querido fazer uma gesticulação de degola diante desta biografia de Drummond, está tudo certo. Afinal, já tinha dito Henry Michaux a propósito de coisas assim, "sem cabeças que rodem" (mesmo que seja a do crítico), "pas de carrousel".
Meu propósito não é tanto responder ao artigo de Felipe Fortuna. Sua peça de promotoria literária é tão prevsível e tão premeditada e é tal a natureza de algumas das suas sentenças (como, por exemplo, a de que no livro a relação entre Dummond e João Cabral é examinada a partir da alteração da poesia drummondiana pelo "estilo cerebral do poeta pernambucano"), que seria preciso estabelecer com elas uma espécie de contraditório, de atracamento de tribunal - algo fastidiosíssimo.
O sentido aqui é mais fazer justiça ao grande número de leitores e mesmo a resenhistas que têm percebido no livro bem mais do que uma "evocação" de Drummond - coisa que Felipe Fortuna confunde com biografia. Evocação será memoralismo, perfil, retrato, nunca biografia - socialização de uma época e de uma cultura, com seus elementos, humores e obras, na existência de um único indivíduo, e ao mesmo tempo a forma pela qual esse indivíduo transborda do círculo dessa cultura e se torna o sujeito de uma voz inconfundível.
No caso de Drummond, uma voz que subia pânica e ao mesmo tempo aliciante nas suas conversas, que ora ditado e também convite, quase um breve assobio entrecortado do espiríto, mas que no fundo era também a expressão do modo de presença do poeta no mundo. Se o resenhista Fortuna não dá por esta voz e esta presença no livro, é porque decerto lhe terá faltado discernimento para saber que elas não existem nunca como evidência, flagrante jóia, mas dispersas nos mil e um objetos e seres com que se confundiram.
É também fazer justiça aos inúmeros que têm sentido no estilo adotado nesta biografia de Carlos Drummond de Andrade um timbre bastante próprio, dizer que estilo é uma questão de moral e a expressão de uma necessidade. Isso: longe de ser uma escolha que se faz sem mais nem menos, longe de ser um rol de tiques, ele é soprado por uma espécie de carência, de falta, de tremor, inscritos na natureza daquilo mesmo que vai ser narrado. Ser essa expressão realizada da necessidade, é o que faz do estilo uma autonomia, e não, como supõem alguns, nem uma submissão nem uma performance.
No caso de Drummond, que tinha muito, como dizia o amigo Otto Lara Resende, de "autista", e que, entrgue a si mesmo e sem a sua poesia, passaria talvez a vida comendo sacrificialmente e em silêncio o próprio fígado, o estilo de narração a ser adotado teria que quebrar mesmo esse estupor, romper com a intransitividade a que estaria aparentemente condenada esta existência. Daí o movimento do estilo que parece ser, para um grande número de leitores, um dos méritos do livro, e para o resenhista Felipe Fortuna motivo de irritação: um movimento e um ímpeto que se caracterizam por iniciar a reconstituição de cada momento, de cada época da vida e da criação poética de Drummond, com a situação já em meio, já desencadeada. Ou, como qualquer boa escola de narradores sugere, começar narrando e contando "in media res" no meio da coisa mesma.
Assim, ao invés de se apresentar uma exposição prévia de motivos, sobre, por exemplo, a "alta magnitude" da poesia de Drummond na primeira metade da década de 40, melhor, muito melhor é reconstituir o encontro de Paulo Rónai, recém-chegado ao Brasil, fugindo do nazismo, com o poeta, logo depois do carnaval de 1942. Ter percebido a profundidade do despaisamento e da dor daquele professor que traduzira para o húngaro o embaraço de pedra itabirana do seu "No Meio do Caminho", ter sabido que o Brasil não era "éden racial" algum, foi, junto com alguns outros episódios, a conta para que o próprio Drummond sentisse que também ele já não pertencia a lugar nenhum, rompesse "os gonzos da família e da classe", e acolhesse na sua visão de mundo e de história o milernarismo da esquerda mundial e brasileira da época, dando à sua poesia um até então inexistente sopro épico e atingindo "o meio dia da sua escrita" (como escreveu José Guilherme Merquior).
Reconstituir esse e outros episódios, sem avisar de antemão que deles sairia uma alta poesia literária, e sem arriar para o pé da página notas e mais notas), foi o que se buscou nesta biografia. É a tal história: levem-se vários poetas da periferia do mundo ao período da Segunda Guerra Mundial, às esperanças saídas da então União Soviética e da Terceira Internacional, à poesia de Apollinaire e Manuel Bandeira, à amizade de Mario de Andrade... Aquele que escrever "Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin" ou "Visão 1994" é Carlos Drummond de Andrade. Mesmo que ninguém soubesse antes que era ele. Sem essa surpresa, essa história súbita e selvagem de um sujeito, sem essa irrupção não premeditada de mundos, não há carrosel, biografia nem nada.

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