São Paulo, quinta-feira, 24 de fevereiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Salários sem conspiração

LUÍS NASSIF

Há vários aspectos a se considerar na conversão de salários para a URV antes de se falar em ganhos ou perdas.
O primeiro ponto relevante é entender a verdadeira abrangência de um plano de estabilização, para não se exigir o que ele não pode oferecer. Como, por exemplo, aumentos reais de salário.
Antes que venha o patrulhamento primário, esclareça-se: crescimento do salário e da renda no país é questão fundamental para o próprio futuro da nação. Portanto, não se está nem contra o crescimento dos salários, nem contra a erradicação da miséria.
O que se está explicando é que distribuição de renda não é função de plano de estabilização. Não porque não seja meta prioritária. Mas porque é tarefa muito mais complexa e abrangente do que uma mera troca de moedas.
Jipe
É o mesmo que exigir que um jipe faça o trajeto Rio de Janeiro-São Paulo por via aérea. Seria muito bom, se jipe voasse. Mas a ponte aérea é feita por boeings, não por jipes.
Pico e média
Posto isto, esclareça-se o verdadeiro sentido de pico e média. Pico só existe em sistemas imperfeitos de indexação, em ambiente inflacionário. Por exemplo, um salário que é reajustado pelo pico no primeiro mês, depois passa mais três perdendo valor mês a mês, para ser recomposto no quinto mês novamente.
Grosso modo, no primeiro mês o salário valia US$ 1.000,00; US$ 900,00 no segundo, US$ 800,00 no terceiro e US$ 700,00 no quarto. Mas no período em questão, aquele salário recebeu US$ 3.400,00.
Se se vai mudar a moeda, trocando uma fraca por outra forte, para que ninguém perca ou ganhe com esta troca, converte-se o valor do salário dividindo aqueles US$ 3.400,00 por quatro meses. Vai dar um salário mensal de US$ 850,00.
Não havendo inflação em real, o poder aquisitivo desse salário permanecerá o mesmo (até aumentará, conforme se demonstrará a seguir). Aí vem a demagogia barata.
O poder aquisitivo é o mesmo, dirão, mas no sistema anterior o salário recebido no mês de pico permitia pagar todas as dívidas. Faltou dizer: todas as dívidas acumuladas no mês anterior quando o valor do salário bateu no fundo do poço.
A conversão pela média, em si, portanto, não significa perdas, mas manutenção da mesma situação anterior. Não vem ao caso se a situação anterior era injusta ou não.
Mudança de moeda não tem o condão de mudar situações. As injustiças têm que ser combatidas independentemente da moeda se chamar cruzeiro ou real.
Se se muda a situação de equilíbrio anterior cria-se espaço para uma nova corrida de salários e preços, onde os salários sempre perdem.
Média acima da média
Além disso, a conversão pela média tem algumas particularidades que podem significar ganhos para os salários.
O cálculo da média vai ser feito pelo valor do salário no dia do recebimento. E este valor é maior do que o valor efetivo do salário no decorrer do mês.
Confira o seguinte exemplo:
1) Um salário, no dia do pagamento, no quinto dia do mês, valia US$ 1.000,00.
2) Assim, 50% desse salário financia despesas correntes da família, distribuídas homogeneamente ao longo do mês.
3) Outros 40% pagam despesas fixas (escolas, aluguel ou SFH etc.), distribuídos ao longo do mês.
4) O que sobra, 10%, é poupado.
As perdas
Dentro dessas hipóteses, com uma inflação de 40% ao mês, o assalariado que consegue aplicar no fundão ainda assim vai ter uma perda de 5% no decorrer do mês. Portanto, convertendo o salário pela média do poder aquisitivo no dia do recebimento vai significar, por baixo, 5% de aumento real.
No caso de assalariados que não conseguem aplicar sequer no fundão, o ganho com a conversão pode chegar a mais de 10%.
Obviamente, não é o único fator a influir no poder aquisitivo dos salários. Certamente haverá uma inflação residual em real, que comerá parte desse ganho. E se a inflação persistir, caso não se encontrem maneiras de proteger o salário em reais, aprofundam-se as perdas.
De qualquer maneira, aparentemente o plano de estabilização deixa em aberto a possibilidade de renegociação de salários empresa a empresa. Há que se pensar em formas de preservar o salário em reais. Mas afastem-se essas hipóteses conspiratórias, de que o cerne do plano reside em um superarrocho salarial.
Pode vir o arrocho, sim. Mas se o plano de estabilização não der certo.

Texto Anterior: Emprego cresce em 93
Próximo Texto: CMN desiste de mudar regras para mutuário
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.