São Paulo, sábado, 26 de fevereiro de 1994
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Londres acolhe cinema político sem ideologia

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE LONDRES

Cinema e política estão se compondo numa nova equação que suprime o fator ideológico. Dos cinco filmes selecionados pela crítica local como os melhores desse início de ano, quatro enfocam temas políticos, assinalados todos eles porém por tratamentos fora de quaisquer sistemas doutrinários. São eles, por ordem de colocação: "The Blue Kite", de Tian Zhuangzhuang; "Em Nome do Pai", de Jim Sheridan; "Nu", de Mike Leigh e "Raining Stones", de Ken Loach, o primeiro chinês, os outros três britânicos.
Os quatro descrevem dramas excruciantes do mundo contemporâneo, tais como são percebidos e sofridos por gente comum, vivendo seu dia-a-dia em outro objetivo do que sobreviver e, se possível, ser feliz. E se algo impede a felicidade dessa gente, dez entre nove chances que vai ser alguma coisa de raiz política.
"The Blue Kite" vem sendo saudado pela crítica como ainda mais penetrante e de maior impacto épico que "Adeus Minha Concubina". Ao invés do tom alegórico e do tratamento lírico predominante nos filmes de seus ex-colegas da Academia de Cinema de Pequim, Chen Kaige e Zhang Yimou, o diretor Tian Zhuangzhuang exibe um painel nítido, cru, sem reservas e sem licença poética, sobre o impacto fulminante do delírio ideológico em gente simples e de boa vontade.
Não só o filme é meio autobiográfico sobre Tian e sua geração, como sofreu ele mesmo a brutalidade que denuncia. O roteiro foi aprovado em 92 e a maior parte do filme rodado em 93. Na fase final porém, uma carta anônima denunciou que o filme fugia totalmente do roteiro oficial. Foi proibido de ser concluído e os responsáveis submetidos a processo. Mas Tian conseguiu recursos externos e concluiu o filme clandestinamente, contrabandeando cópias para Cannes e para o Festival de Tóquio, onde ganhou como melhor filme.
A história, narrada pela pespectiva do garoto Chen Xiaoman, começa em 52 e acompanha cada uma das cruzadas de caça às bruxas coordenadas por fanáticos do partido, desde o Grande Passo à Frente, de 57, até a Revolução Cultural dos anos 60 e seu efeito arrasador sobre o cotidiano dos humildes e desprotegidos. Um "must" para quem imagina que a loucura havia terminado com a construção da Grande Muralha.
"Nu" –o título é revelador–, de Mike Leigh, é um panorama não menos chocante da Londres atual. Johnny (David Thewlis em desempenho magistral), um desempregado e sem teto, se desprende da rotina de crimes e abusos de Manchester e busca refúgio junto a sua ex-namorada em Londres. Ele rejeita tudo e todos que vê, por desfastio, amargura ou impotência. Cruza a cidade à toa, quem quer que encontre é um foco suficiente para desencadear suas obsessões paranóicas e apocalípticas. Eles por sua vez lhe dão o troco na forma de seus fantasmas pessoais, sexo rançoso ou pancada grossa.
Em "Raining Stones", Ken Loach assume um tom mais caloroso para retratar uma família de trabalhadores em Lancashire. O quadro geral ainda é o mesmo, o de uma sociedade regulada por impulsos aquisitivos, instintos destrutivos e fermentada por preconceitos e discriminações.
Tudo o que Bob Williams (Bruce Jones) deseja é manter a família unida, celebrar sua fé católica e dar um lindo vestido de primeira comunhão para sua filha. Sem dinheiro para pagar por sua felicidade, recorre à agiotagem e se vê submerso num pesadelo de selvageria indiscriminada. Descobre que a aparência normal do cotidiano é uma ilusão: a aliança do poder com as cargas de instinto que ele catalisa é a matriz do que chamamos de realidade.
O tema de "Em Nome do Pai", de Jim Sheridan, é puro explosivo por aqui. Ele trata da falsa acusação e do processo espúrio que levou à cadeia quatro inocentes, responsabilizados pelas bombas que explodiram em bares da cidade de Guildford em 1974, com inúmeras vítimas. Graças a uma ruidosa campanha e um apelo memorável, eles foram libertados em 1989.
Ressentimentos de todos os tipos ainda estão no ar e o assunto é fonte de permanente mal-estar. Jim Sheridan aponta a brutalidade e má-fé com que a polícia distorceu as provas e forçou as condenações, cedendo ao clamor público de vingança imediata. Mostra também as venalidades do sistema judiciário, bem evidentes quando os réus são irlandeses. Tudo isso sem em nenhum momento deixar de lembrar a crueldade extrema e injustificável das bombas e da política do IRA.
As maiores vítimas não são os Quatro de Guildford, mas as vítimas dos atentados. A estratégia de Sheridan para conseguir denunciar as injustiças sem tomar partidos, foi forçar um pouco os fatos e fazer com que um dos acusados, Gerry Conlon (Daniel Day-Lewis), fosse posto na mesma cela que seu pai, o pacifista Giuseppe (Pete Postlethwaite). O conflito entre pai e filho desarma as plataformas política e contrapõe, preto no branco, a diferença entre as éticas da ação e a singularidade da condição humana. Nesse, como nos outros casos, confrontados os discursos formais com a fragilidade de seres concretos, o apelo da glória cede à palpitação da dor compartilhada.

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