São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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Todo plano é uma grande confusão

JOSÉ ROBERTO CAMPOS
EDITOR DE ECONOMIA

O país cai amanhã em seu sétimo plano econômico em oito anos, fecha um ciclo e volta ao ponto de partida. No dia 28 de fevereiro de 1986 abriu-se a era dos choques, com o Cruzado inaugurando a série de tentativas fracassadas de domar a inflação. Os alicerces do Plano FHC são os mesmos do Cruzado. Mas, para evitar a gigantesca intervenção do Estado em todos os contratos, com suas tablitas, tabelonas da Sunab e congelamento, buscou-se um complicado e engenhoso desvio, expresso na sigla URV (Unidade Real de Valor).
O plano FHC promete não repetir os erros do Cruzado ou um ingrediente clássico dos choques –a surpresa. Sobra, porém, o inevitável componente das grandes mudanças econômicas –a confusão. Sabe-se quase tanto sobre o programa de estabilização hoje quanto se sabia quando o ministro da Fazenda o anunciou no início de dezembro. Segue abaixo um roteiro das dúvidas (muitas) e certezas (poucas) das medidas que serão finalmente conhecidas amanhã.
O que é a URV?
A Unidade Real de Valor é um novo índice de inflação que o governo vai lançar no dia 1º de março. Ao contrário de outros como o IGP, IPC, INPC, por exemplo, seu valor será expresso em cruzeiros reais, como a Ufir.
Para que serve a URV?
O objetivo do governo é atrelar todos os preços da economia à URV, procurar fazer com que todos eles corram à mesma velocidade. Quando isto acontecer, a URV se transformará em moeda e a inflação pode cair para perto de zero.
Como será calculada a URV?
Este continua sendo um dos grandes mistérios do plano. Como os salários, as tarifas públicas e, possivelmente, a arrecadação, estarão amarrados à URV, a possibilidade de "criar" um índice que fique muito abaixo dos outros, isto é, não reflita a inflação verdadeira, parece remota. Dizer que a URV será calculada como é hoje a taxa de câmbio não esclarece muita coisa. Significa dizer que o Banco Central continuará olhando para todos os índices de inflação, verá a que velocidade estão correndo e arbitrará uma taxa, corrigindo-a de eventuais derrapagens ao longo do mês.
Por que já se fala então em inflação em URV?
Porque a URV, na fase inicial do plano, é um índice de inflação, mas expresso em cruzeiros reais. Suponha que uma empresa atrelou seus preços à URV e queira aumentar sua margem de lucro, ou tenha pressão de custos porque seus insumos subiram, ou porque esteja pagando juros mais altos. Ela vai ajustá-los e fazer com que as mercadorias que vende, que valiam, por exemplo, uma URV passe a valer 1,5 URV, por exemplo. Na verdade, a inflação ocorrerá em cruzeiros reais e a variação da URV deverá refletí-la.
Como o plano derrubaria a inflação?
Ele praticamente não garantiria grandes tombos na inflação em sua primeira fase, a da URV. O plano de estabilização baseado na URV, índice agora, moeda depois, não garante o fim da inflação, mas apenas que se elimine o que os economistas chamam de memória inflacionária. Isto é, que a alta inflação do mês passado sirva de piso mínimo para os agentes econômicos calcularem a inflação presente e projetarem a futura. Quando a URV se transformasse na nova moeda, aí sim, é possível que ela despenque para níveis próximos a zero, em um primeiro momento.
Por que? A rigor, é um truque lógico. Suponha que uma URV valha CR$ 100 no primeiro dia do mês e CR$ 200 no último dia do mês. A inflação em cruzeiros reais foi de 100%, mas a uma URV continuou valendo uma URV. Se a URV no final do mês virasse moeda de repente, a inflação do mês seria 0%. Se todos os preços estiverem variando segundo a URV e a URV se transforma em moeda, a inflação do passado desaparece.
Como impedir a volta da inflação?
São as regras de implantação e funcionamento do plano que vão dar a ela (ou não) um anteparo (forte ou fraco) à volta da inflação. É o que a equipe econômica ainda está definindo. Em teoria, para a URV funcionar bem seria necessário que quando ela estivesse a ponto de virar moeda, não houvesse ganhos nem perdas para ninguém, de forma que empresários e trabalhadores, por exemplo, não sintam necessidade de aumentar preços ou salários, isto é, não pressionem inflação na nova moeda.
Por que sempre os salários são reajustados pela média?
Porque os economistas acreditam que aumentos de salários que não estejam baseados em aumento da produtividade são inflacionários. A média representa o valor efetivo do salário em um ambiente contaminado por uma inflação alta. Antes da mudança para a URV os salários nunca chegaram a ser pagos pelo pico, porque chegavam nos bolsos dos trabalhadores um mês depois, corroídos por uma inflação x. Se fossem convertidos para a URV pelo pico, haveria um ganho real, caso a inflação declinasse violentamente –o objetivo do plano. As empresas teriam aumento de custos e procurariam jogá-los para os preços, causando mais inflação.
Há perdas com a conversão dos salários pela média?
A discussão sobre isto é interminável. Se se acredita que o salário de pico (o acerto da data-base) foi algum dia pago pelo seu valor, há perdas em relação a este pico inexistente. Considerar ou não a inflação do mês em que é lançado o plano pode resultar em perdas sensíveis. A equipe econômica ainda não deu seu parecer final sobre como a inflação de fevereiro entra na fórmula. De qualquer forma, as perdas eventuais com a conversão seriam menores se a economia se estabilizar do que se a inflação prosseguir nos atuais patamares. Quem argumenta contra a conversão pela média tem suas razões: os planos que a implantaram, como o Cruzado, fracassaram. E os salários sempre sairam perdendo.
Os preços não são sempre reajustados pelo pico? Não são inflacionários também?
Os economistas da equipe acreditam que os preços possam ser jogados para baixo em um momento posterior, desinflados quando a inflação baixar, o que não é possível com os salários, por motivos legais. Mesmo que os preços subam e sejam convertidos pelo pico, o mercado, em uma economia estabilizada, se encarregará de colocá-los para baixo, acredita a equipe. Nos setores onde há concorrência, aumentos defensivos de preços serão corrigidos pela disputa para vender mais. O problema se concentra nos chamados oligopólios, um pequeno número de empresas que domina a produção em vários setores e, que, com poucos competidores, tendem a impor os preços de suas mercadorias e ampliar margens de lucros.
Mesmo assim, por que não converter os preços pela média?
Para a montagem do plano, transformar os preços pela média só faria sentido se eles fossem tabelados e congelados. O congelamento e o tabelamento no Plano Cruzado geraram sérios problemas de abastecimento e mostraram que o governo não tinha capacidade de sustentar a gigantesca estrutura necessária para uma fiscalização permanente dos preços. A equipe econômica, que tem alguns pais do Cruzado, quer evitar isto agora.
O governo não disse que todo o mecanismo de implantação da URV seria voluntário?
O governo quer fixar os salários pela média como uma base mínima para reajustes e deixá-los ao sabor das negociações entre empresários e trabalhadores. Eventuais ganhos salariais, repassados para os preços ainda na fase da URV como índice, poderiam trazer aumento da inflação em cruzeiros reais, mas seriam eliminados quando a URV se autoliquidasse, transformando-se em moeda. Como o período de existência da URV deve ser curto e os salários teriam de ser convertidos de qualquer maneira pela média quando a URV se tornar moeda, a equipe resolveu fazer isto agora.
Há data para o fim da URV e implantação da nova moeda?
A MP deixou em aberto e fixou prazo de até 360 dias. Sabe-se que em sua formulação original este período de tempo seria longo, para que tudo se resolvesse através da negociação e a economia se adaptasse sem traumas à URV. A equipe trabalha agora com um período muito mais curto, de dois a três meses.
Por que os prazos ficaram mais curtos?
Primeiro, por razões políticas. O ministro da Fazenda pretende ser candidato a presidente da República e seu maior (senão único) cacife seria uma inflação baixa. Alguns economistas de fora do governo têm argumentos econômicos para defender prazo curto para a vigência da URV. Eles vêem a ameaça de uma forte aceleração inflacionária em cruzeiros reais, detonada pela indexação diária que a URV permite. No caso de isto acontecer, sofreriam perdas brutais todos aqueles que não tem o poder de indexar seus rendimentos, como os assalariados.
A ameaça de hiperinflação é real?
A superindexação que a URV propicia pode elevar a inflação numa magnitude impossível de se prever a priori. Há economistas que acreditam numa significativa aceleração dos preços. Outros, que a inflação sobe um pouco, permanecendo no intervalo de 40 a 45%. E há quem acredite que a inflação comece a declinar já no primeiro mês. São apostas.
O reajuste dos preços seria mesmo diário com a implantação da URV?
Existe esta possibilidade, assim como uma grande confusão sobre o assunto. A URV servirá como um índice de inflação para corrigir os preços, da mesma forma que os demais utilizados pelo comércio. Em tese, não há motivos para que os preços mudem todo dia, simplesmente pelo fato de que isto é permitido hoje no varejo, mas poucas empresas adotam esta prática. Onde há concorrência, os empresários, além disso, têm de ficar de olho nos preços do vizinho. A URV serve mais como parâmetro para reajustes, que podem, de acordo com a situação das empresas e da velocidade da inflação, continuarem a ser alterados semanalmente, quinzenalmente etc. Quanto aos setores onde não há competição, não haveria grandes mudanças. Boa parte deles já usa o dólar do dia para fixar seus preços.
Por que em vez de criar uma grande confusão com a URV não se vai direto para o dólar, ao qual estará atrelada a nova moeda?
Isto chegou a ser cogitado pela equipe de FHC. Há vantagens e desvantagens nisto. Qualquer plano para frear bruscamente a inflação tem como primeiro problema o de resolver a questão das dívidas passadas. Se a inflação declina bruscamente, o que fazer com empresas, pessoas e governos que contrairam obrigações que embutiam uma correção monetária de 40%, 50%? Iriam à falência ou sofreriam grandes perdas em seu patrimônio. Por este motivo os planos econômicos do tipo do de FHC trazem as tais "regras de conversão" para tirar, no momento zero de sua implantação, a inflação projetada nos preços e contratos e que não irá se efetivar.
A dolarização argentina não seria mais simples?
Sim, por motivos que os economistas da equipe entendem serem inaplicáveis ao Brasil. Os argentinos tinham um indexador e uma moeda que sofria correção diária (em uma inflação de 200% ao mês), o dólar, de ampla utilização em todo o país. Aqui, o dólar é um parâmetro para se corrigir preços mas é pouco utilizado em espécie nas milhares de transações econômicas diárias. O governo argentino reconheceu que a moeda do país de fato era o dólar, estabeleceu uma relação fixa com o austral (hoje peso). Como o dólar não tem esta presença vital na economia brasileira, optou-se por criar primeiro um índice que corrige os preços e contratos diariamente, a URV, que flutuará junto com o dólar.
O que vai acontecer com o dólar aqui?
A equipe econômica não tocou no assunto ainda. Ela aproximou as cotações do dólar comercial do flutuante (ou turismo) sem unificá-los. Economias estáveis apresentam um tipo de câmbio apenas, com cotação regulada, a grosso modo, pela quantidade de recursos externos que entram e saem do país, sejam resultado das trocas comerciais, investimentos ou capitais especulativos. Como no Brasil, hoje, o país vende mais do que compra no exterior (entram mais dólares do que saem) e há grande afluxo de capital especulativo, se a cotação do dólar fosse regida por um mercado livre, ela desabaria, prejudicando os exportadores. A saída foi criar um mercado de divisas para os exportadores (o comercial), onde o BC garante uma taxa que suba pelo menos perto da variação da inflação externa, e outro para as demais transações, o flutuante. Se o governo for estabelecer um câmbio fixo, como na Argentina (um dólar igual a uma unidade de moeda local) torna-se inútil a existência do esquema atual de dois mercados.

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