São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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O sorriso do ministro

JUNIA NOGUEIRA DE SÁ

Manchete da Folha de domingo, 20 de fevereiro: "URV mantém valor de salários". De segunda: "URV será facultativa para setor privado". De terça: "URV será obrigatória para salário". De quarta: "URV para preços divide o governo". De quinta: "URV pode valer para preços básicos". De sexta: "Plano FHC vai elevar juros". De ontem: "Média de 4 meses converte salários". A de hoje, o leitor pode conferir na capa do jornal.
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Diz-se nas redações que jornais são feitos para durar um dia –na manhã seguinte, cheios de notícias velhas, estarão embrulhando peixe na feira ou forrando a gaiola do canário. Na semana passada, eles duraram menos que isso, algumas poucas horas, graças ao vai-e-vem da equipe econômica a respeito do plano para combater a inflação e colocar o Brasil na lista de países que têm moeda estável. Mas duraram só algumas horas, também, graças à sede com que a imprensa foi ao pote do plano. Atrás de uma manchete sensacional, de um "furo" que os outros não tinham, os jornais fizeram um carnaval tardio sobre as regras de implantação da URV e mais desinformaram do que informaram. O resultado da combinação entre uma equipe econômica que irresponsavelmente deixa vazar o que não está decidido e uma imprensa que irresponsavelmente transforma esses vazamentos em notícia de primeira página podia ser visto na capa do jornal carioca "O Globo" de sexta-feira: "Preços disparam à espera da URV".
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Boa parte das "barrigas" (no jargão jornalístico, notícias infundadas) publicadas na semana passada sobre o Plano FHC e as regras da URV poderiam ser evitadas. Um exemplo? O jornal "Gazeta Mercantil", especializado em economia e negócios, deu ao assunto uma cobertura sóbria ao longo de toda a semana. Aparentemente, estava sendo ultrapassado em novidades pelo resto da imprensa. Na verdade, foi cauteloso diante de um ministro que diz uma coisa hoje e desdiz amanhã com a mesma naturalidade com que exibe o que a imprensa já chama de "sorriso de aeromoça". Aquele que ela prega no rosto enquanto o avião está caindo.
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Mas os chamados grandes jornais precisam de notícias quentes todos os dias, e de manchetes vistosas. Por isso, mesmo que o ministro dissesse, como disse nos jornais de quarta-feira, que o plano é "matéria técnica" sobre a qual não queria falar, arrematando com um "não sei direito e não tenho a pretensão de ser o dono da verdade", suas declarações continuaram sendo disputadas. Mesmo que já tivessem produzido manchetes disparatadas: no domingo, 20 de fevereiro, o ministro dizia na Folha que os salários teriam conversão pelo valor nominal, enquanto "O Globo" e "Jornal do Brasil" noticiavam já o contrário, apoiados em reportagens onde "graduado assessor" ou o próprio FHC davam as informações. O desencontro durou até a terça-feira, quando o ministro uniformizou seu discurso e anunciou a conversão compulsória pela média -uma média que não soube explicitar. No resto da semana, o que se disse sobre a conversão de aluguéis, mensalidades escolares e de planos de saúde, para ficar em três exemplos, variou dia após dia, de jornal para jornal. Na capa de quase todos eles, lá estava o ministro sorrindo.
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Um plano econômico não nasce de repente, e é claro que tem de passar por idas e vindas, negociações e conversas, discussões e acertos antes de ser divulgado. É claro que algumas medidas dadas como líquidas e certas acabam sendo radicalmente alteradas enquanto outras sobrevivem ao debate. Toda a imprensa sabe. Por isso, em vez de dar às regras ainda em elaboração o peso de manchetes definitivas (como "URV será facultativa para setor privado", na Folha de segunda-feira, ou "Governo define conversão de salários" –pela média de oito meses–, em "O Estado de S.Paulo" da quarta), os jornais deveriam se preocupar em revelar os bastidores da confecção do plano e contribuir para acalmar os ânimos. Envelheceriam menos rapidamente, seriam mais úteis e seus leitores sairiam mais bem informados.
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Em vez de correr atrás do "furo", de tentar antecipar notícias que não existem, a imprensa faria melhor seu papel se conseguisse analisar os motivos pelos quais a equipe econômica, às vésperas de colocar a URV nas ruas, ainda não tinha claro como ela seria usada nas contas do dia-a-dia dos cidadãos. Ainda não sabia como converter salários, por exemplo. Se o leitor pudesse conhecer o que pensa essa equipe econômica, quais suas divergências e quais suas dúvidas, poderia formar um juízo acerca do plano-ele-mesmo. Se o leitor pudesse ter, através da imprensa, uma visão mais crítica do ministro da Fazenda, e uma visão mais crítica dessa sua prática de dizer hoje o que não sabe direito para desdizer amanhã, poderia entender melhor o que se passa no Brasil pré-URV. Mas a imprensa tudo perdoa em FHC, o ministro mais poupado da história recente do país, desde que os jornais puderam voltar a criticar ministros e outras autoridades.
Da maneira como a imprensa noticiou o plano FHC na semana passada, tudo o que o leitor pôde fazer foi sentar à espera das medidas que vão chacoalhar sua vida mais uma vez e jogar fora o jornal antes mesmo de terminado o dia. Afinal, para que servem jornais quando eles têm ministros sorrindo acompanhados de notícias velhas?

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