São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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Cuidado com a sua vergonha

JANIO DE FREITAS

Se alguém disser que há uma conspiração do cinismo para arrasar o que resta de vergonha no Brasil, ninguém encontrará provas suficientes em contrário. Mesmo que se tomem apenas os fatos da última semana, nem um jornal inteiro comportaria o relato da ação dos demolidores. Curvemo-nos, então, à forçosa continência de um plano de exemplos, no entanto capazes, espero, de compensar o pequeno número com o alto valor simbólico.Você sabe que o Congresso fez a segunda das duas aprovações necessárias ao Fundo Social de Emergência. Pois não fez, não. A aprovação foi farsa. O texto submetido à segunda votação continha uma alteração feita pelo deputado Nelson Jobim. Logo, cada texto teve uma aprovação e nenhum deles teve as duas indispensáveis à aprovação real. Venceram a fraude e a farsa aprovadas pela maioria de um congresso de cinismo reunido no prédio do Congresso Nacional.No dia seguinte à falsa aprovação não houve presenças suficientes, como você sabe, para a promulgação do Fundo. Foi a continuidade natural de outra coisa que você sabe: hoje em dia os congressistas só dão número para votações nas quartas-feiras, e por muito favor e quando são muito instados a dar um pulo em Brasília. O presidente do Congresso, senador Humberto Lucena, lança, porém, a solução mais fiel às suas próprias qualidades e às predominantes no Congresso: pagar um "jeton", um extra por sessão, para atrair os congressistas ao comparecimento. Em vez de descontar as faltas, providência que lhe "suscita dúvidas", pagar mais. E olha que descontar seria o mínimo, porque o previsto para os faltosos contumazes é a cassação do mandato. O próprio presidente do Congresso, nunca será demais lembrar, é um dos que foram livrados de dissabores investigatórios pela benevolência comprometedora dos comandos da CPI do Orçamento.Caso a solução de Lucena esbarre em resistências de fora do Congresso ou, implantada, não funcione, o relator de outro exemplo da moralidade vigente, a revisão constitucional, tem uma solução que ele quer posta na Constituição mesma: Câmara, Senado e Congresso deixam de exigir a presença de pelo metade mais um dos seus membros para sessões deliberativas. Qualquer número será bom, dando-se por aprovados os projetos apoiados pela maioria dos presentes, desde que iguale um quarto dos membros. Na Câmara, 126 votos, do total de 503 membros, aprovariam qualquer coisa. No Senado, não seriam necessárias nem duas dúzias de senadores, por mais graves que fossem as impilcações de um projeto. Nelson Jobim vai ainda mais longe do que Lucena. Quer consagrar a malandragem e instituir a legislação criada pelo facilitário.O deputado Ibsen Pinheiro, como você sabe, teve sua situação agravada, nas investigações e nas conclusões da CPI, por ter sido decisivo na protelação de uma CPI anterior sobre o Orçamento, a qual acabou arquivada. Nesta semana, os líderes das bancadas partidárias na Câmara e no Senado (com exceção só do PT, PDT e PC do B), mais os presidentes das duas casas, impuseram a 8 protelação das CPIs das empreiteiras, da CUT e do financiamento das campanhas eleitorais passadas. É óbvio que estão decidindo em causa própria, tanto quanto Ibsen o fez, mas qualquer cidadão tem o direito de suspeitar que estejam, também, patrocinados pelas empreiteiras. Tornaram-se, eles próprios, merecedores todos de uma CPI.No Executivo, você tem visto, todos os dias, a bagunça das informações contraditórias que o ministro Fernando Henrique e seus trapalhões distribuem a cada dia. Já é ocioso tratar desta leviandade, mas a última pérola da verborragia do ministro merece reprodução: "Se eu colocar URV nos preços, fica pior, porque sobe tudo junto, preços e salários. Quem se sentir prejudicado (pela conversão dos salários) deve recorrer às câmaras setoriais". É uma confissão inquestionável de que o plano se assenta em um arrocho salarial deliberado. O que disse Fernando Henrique é que o plano se destina a impedir que os salários possam acompanhar ("subam junto") os preços. Ele não se sente envergonhado de dizer, depois daquela declaração, que a URV será aplicada só aos salários para que estes "fiquem protegidos dos preços", que permanecerão livres.Nestes exemplos não há só desfaçatez corrosiva e contrária ao que resta de vergonha no Brasil. Há, também, um ingrediente essencial – o elitismo. Que não se restringe aos políticos, mas se dissemina. Aí está, com toda a eloquência neste sentido, o comportamento das autoridades policiais e judiciárias de Brasília: pelos mesmos crimes, o vigilante Irael teve a sua prisão rapidamente pedida pela polícia, autorizada pela Justiça e realizada, enquanto o médico Vasco Rodrigues da Cunha, apesar dos agravantes em relação ao outro, continua sem mais incômodos do que as denúncias registradas por algumas de suas muitas vítimas. Um é mulato, guarda' o outro é branco, rico e do soçaite. Isto basta para que, neste último caso, até a Delegacia da Mulher se torne protetoramente machista.Você que proteja a sua vergonha, porque o assalto a ela não vem de pobres trombadinhas e favelados. Vem de especialistas no ramo.

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