São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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A média, o pico e o vale de lágrimas

ROBERTO MACEDO

É preciso exorcizara idéia de que são as fórmulas do governoque ditam os salários
Mais uma vez vem à tona a velha polêmica das perdas ou ganhos ligados à conversão dos salários para uma nova moeda ou valor-base para reajustes futuros, na esteira de mais uma tentativa de estabilizar a economia. De novidade, há a conversão para a URV e até sexta-feira especulava-se que seria realizada com base nos valores dos salários em dólar.
Nos seus termos mais gerais a questão é conhecida. O salário real, depois de corrigido integralmente pela inflação numa data de referência, que chamarei de período 1, vale, digamos, 100. Este é o chamado "pico" do salário.
No período 2, em que não teve reajuste, ou este recompôs apenas parcialmente a inflação, ele passa, digamos, a 80, e aí o salário está no "vale".
No período 3, pretende-se estabilizar a economia e seria ótimo se fosse possível recompor o salário em 100 para vigorar nesse período. Entretanto, a média dos dois períodos anteriores foi 90 e a tentativa de elevá-la para 100 comprometeria, via pressões de demanda e de custos, o próprio sucesso do programa antiinflacionário. Tecnicamente, portanto, o governo tem razão quando propõe o reajuste pela média.
A conversão pela média envolve, na prática, muitas complicações. A inflação vem se acelerando e de um modo geral o resultado do cálculo da média produz valores maiores se for tomado um período mais longo. Há diferentes datas-base e a conversão trataria diferentemente aquelas categorias com data-base recente, qaundo tiveram uma reconstituição integral do salário-real, sofrendo menor erosão a partir de então, ou seja, estão mais próximas do pico. A respeito do assunto, o Folha publicou no dia 23, assinado por Gabriel J. de Carvalho, um exercício de conversão para os quatro grupos de datas-base. A conclusão é que elas definem se o salário ganha ou perde nessa conversão.
Em toda a imprensa tem saído uma profusão de tabelas e análises discutindo o assunto, mas frequentemente ignorando aspectos fundamentais que aponto a seguir.
Para início de conversa, toda discussão gira em torno de perdas e ganhos na data de conversão e relativamente ao salário no passado. O que vai acontecer daí pra frente, entretanto, muita gente esquece, mas é a questão fundamental. Se a inflação for de fato sensivelmente reduzida e a economia se recuperar, todos vão ganhar, inclusive recuperando eventuais perdas na data de conversão.
No setor privado, o que de fato faz os salários crescerem ou caírem não são essas fórmulas do governo, mas o desempenho da economia. Quando ela cresce, aumentam os investimentos e a demanda de mão-de-obra. A disputa pelos trabalhadores faz o salário subir. Quando a economia entra em recessão ou estagnação, há um movimento de sentido contrário. Quem fizer uma análise dos salários reais no Brasil nas últimas três décadas, verificará que eles estão mais correlacionados com o vaivém da economia do que com as fórmulas de política salarial.
Toda a discussão na imprensa parece sugerir que os salários são determinados pelo governo, o que desinforma o leitor e confunde a discussão do assunto. Seria importante ficar claro que as fórmulas de política salarial não determinam os salários de contratação, exceto no caso do salário mínimo. Seu papel é fixar apenas a taxa mínima de reajuste coletivo para quem é estável nas empresas.
Ora, estas podem dar reajustes maiores, individual ou coletivamente, ou recorrer à rotatividade da mão-de-obra para reduzir os salários reais e às vezes até os nominais, se perceberem que é possível contratar mão-de-obra equivalente por salários mais baixos. Em setores onde a rotatividade é muito alta, como na construção civil, esse ajustamento às condições de mercado ocorre naturalmente e é muito mais rápido.
Assim, é preciso exorcizar a idéia de que são as fórmulas governamentais que determinam os salários. Acima do mínimo elas não determinam os valores absolutos dos salários e só condicionam a sua evolução enquanto não se processa o ajuste às condições do mercado de trabalho. Pode-se agora indagar: de onde vêm ou virão as perdas salariais, de que os trabalhadores, com razão, tanto se queixam? Insisto que os salários têm perdido mesmo é por conta da inflação e da estagnação. Se você ainda tem dúvida, examine os seus próprios picos e vales e saia por aí procurando emprego.
Se é isso que ocorre, por que não concentrar os esforços dos trabalhadores, das lideranças sindicais e dos políticos, em combater esses dois inimigos e não ficar malhando só o que é menos importante?
Vi o exercício da Folha e percebi que uns perdem e outros ganham na data de conversão, mas há gente no governo que pode bolar uma fórmula que acerte boa parte dessas diferenças. Mas o fundamental seria que os interessados, em lugar de ficarem obcecados por essa aritmética dos salários, se empenhassem em ver o problema num contexto mais amplo e procurassem assegurar e barganhar com o governo as condições para que o plano dê certo, estabilizando a economia para que ela volte a crescer.
Desse ponto de vista, menos do que a fórmula, o que interessa para os trabalhadores é saber se vai haver de fato o equilíbrio fiscal –o que envolve inclusive acompanhar a execução do Orçamento–, se a URV quando virar moeda vai ser emitida com moderação, e tudo o mais que for necessário para evitar a queda do salário em URV, garantir a sua recuperação e evitar que toda essa discussão sobre conversão de salários se repita novamente no início do mandato do novo presidente.
Aliás, este pode ser o Lula, que se optar pelo pico, não segurar o Orçamento e expandir o emprego e horas extras na Casa da Moeda, jogará a inflação para o alto e seu emprego estará sujeito à rotatividade.
Em outras palavras, os trabalhadores, os seus líderes e os políticos que dizem defendê-los deveriam voltar-se para os aspectos macroeconômicos da questão salarial, envolvendo-se também nas questões monetárias e fiscais e indo além dessa limitada aritmética das conversões e das fórmulas de política salarial.
Antes de concluir, cabe ainda uma referência ao caso das empresas estatais onde, por força do corporativismo dos empregados e da má gestão de seus dirigentes, as fórmulas constituem realmente o limite mínimo de reajuste e muitos ganhos se sobrepõem acima dele.
Nesse caso, eu me arriscaria a dizer que elas são responsáveis por uma distorção de outra natureza. Esses trabalhadores têm conseguido na Justiça a reposição de "perdas" decorrentes de planos anteriores, além de sempre conseguirem algo acima do ditado pelas fórmulas. Aí, paradoxalmente, a política salarial de que tanto queixam tem sido um fator importante para sustentar os seus salários (inclusive benefícios indiretos e fundos de pensão) acima do mercado.
Enfim, nessa questão da conversão pela URV há muita miopia e demagogia. A choradeira da defesa do pico e o desprezo pelos fatores monetários e fiscais que levam aos vales incluem-se entre os responsáveis por manter os trabalhadores dentro de outro buraco, o vale de lágrimas onde está o sofrimento maior da inflação e da estagnação e onde estão também os sem-salário, vítimas do desemprego.
Para estes, juntamente com os que trabalham no mercado informal, as fórmulas de política salarial não passam de miragens. No meio do bolo, há até lágrimas de crocodilo, vertidas por aqueles que estão se beneficiando com as fórmulas que tanto criticam, parte de um entulho autoritário até hoje não removido.

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