São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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Edição de novelas de W. Faulkner mutila original

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

É verdade que William Faulkner (1897-1962) escreveu e publicou várias versões dos mesmos textos. É verdade também que retomou os mesmos temas e que muitas passagens e imagens de sua prosa remetem de um livro a outro como se toda a obra fosse um único romance formado por vários contos interligados. Por isso não parece tão chocante a princípio que uma edição reúna três "novelas" (na realidade capítulos de romances, partes de três livros diferentes) sob o título "Três Novelas de William Faulkner".
O leitor pode até passar por cima de alguns aspectos desleixados da edição, compreensíveis num país de Terceiro Mundo dentro de um setor em crise -a lombada onde figura apenas o nome do autor e não o da obra, como se o livro fosse uma espécie de obras completas reunidas etc. -, mas não poderá deixar de se espantar com a página de créditos, onde parece haver um mal entendido em relação à origem dos textos, se se der ao trabalho de cotejar com os originais.
Basta uma vista d'olhos pelos textos em inglês para compreender que algo está errado nesta edição. A começar pelo fato de que "Cavalos Malhados" (Spotted Horses) não faz parte, pelo menos com esse título, da edição americana de "The Hamlet", como anunciam os créditos desta tradução brasileira. Na verdade, o texto traduzido como a primeira das três "novelas" tem como título original "The Peasants" ("Os Camponeses") e compreende o primeiro capítulo do livro quatro de "The Hamlet". "Spotted Horses" é outra versão que Faulkner fez da mesma história, um texto completamente diferente do aqui traduzido . Procurado pelo Folha, o responsável pela Civilização Brasileira, Ênio Silveira, disse que "Spotted Horses" já era o título dado ao primeiro texto na edição americana -"Tree Famous Short Stories", da Random House, a partir da qual foi feita esta tradução.
Muito bem. Realmente essa edição da Random House existe, o que elimina a responsabilidade da Civilização Brasileira em relação à modificação do título. Embora não se entenda a razão exata de o título do texto ter sido modificado ao ser extraído do romance de origem, de 1939, para se transformar em "novela" independente, essa mudança não parece escandalosa, visto que o próprio autor havia escrito anteriormente, e publicado em junho de 1931, uma história com os mesmos personagens e a mesma situação (um leilão de cavalos selvagens) com o título de "Cavalos Malhados", embora bem mais curta e num outro estilo. De qualquer jeito, uma edição que se prezasse deveria pelo menos conter um prefácio de esclarecimento.
O escândalo mesmo começa mais adiante, conforme o leitor avança a duras penas pelo texto traduzido. Há alguns problemas, sobretudo de estilo, algumas frases dedifícil entendimento, que em ingês soam claríssimo (por exemplo: "Cruzando o lado esquerdo de sua cabeça tendo cortado a ponta dessa orelha, havia uma ferida" e, em inglês: Across the left side of his head, obliterating the tip of that ear, was a...")
Mas isso ainda é o de menos. Como justificar a criação de parágrafos onde não havia, como no início da segunda e última parte do texto (pág. 83 da edição brasileira). Os diálogos de Faulkner, em texto corrido, dentro de um mesmo parágrafo foram "domesticados" pela tradução, transformados em falas com travessões. Para que abrir parágrafos? Para facilitar a leitura? Para que o leitor possa respirar? Porque os parágrafos de Faulkner são muito longos? Caberia perguntar ainda: Se é assim, para que traduzir Faulkner?
E isso ainda não é tudo. Onde foi parar o último parágrafo desse primeiro texto, que a Civilização Brasileira parece ter simplesmente decidido suprimir? Ou será que a própria Random House o suprimiu ao incluir "The Peasants" com outro título nesta coletânea? Na edição americana de "The Hamlet", pela Vintage (também Random House), revista em 1990, esse parágrafo (o final da história, ou melhor, do capítulo) ocupa duas páginas inteiras. É inadmissível que tenha desaparecido. A sensação de engodo é tão grande que dificilmente se tem vontade de prosseguir. O trabalho descuidado de edição não pode ser justificado por nada, muito menos pela desculpa de que se trata de um ato "formador", "educador", na divulgação de um dos maiores escritores do século. Porque o que se está lendo nesta edição simplesmente não é Faulkner.
A segunda "novela", "O Velho" ("The Old Man") faz parte de "Wild Palms" ("Palmeiras Selvagens"). Nesse caso, o próprio Faulkner havia reconhecido em entrevistas, talvez por gentileza a seus interlocutores, que se tratava de um projeto fracassado. "Wild Palms" intercala duas histórias paralelas e intercortadas ("O Velho" é uma delas) na tentativa de criar uma progressão romanesca. Daí a possibilidade de transformar ambas em "novelas" autônomas e publicá-las independentemente.
O mesmo acontece com "O Urso", originalmente a quinta parte de "Go Down Moses", um livro formado por histórias autônomas embora seja chamado de "romance" em certas edições. Tanto "Cavalos Malhados" como "O Velho" e "O Urso" (ambos já publicados no Brasil) são histórias extraordinárias, o que torna ainda mais decepcionante esta edição da Civilização Brasileira.
Dá para entender que a reunião das três histórias tenha sido concebida por afinidade temática, o que não é dificil num escritor que parece estar escrevendo sempre o mesmo livro em diferentes versões e pontos de vista. Todas as três "novelas" tratam do confronto do homem com uma natureza selvagem, indomada. Homens que tentam estabelecer regras e se sentem traídos quando a natureza não as cumpre . São pequenas tragédias em tom bíblico onde o confronto com a natureza revela tanto sua força descontrolada -como a enchente de "O Velho"- quanto a obsessão pela liberdade absoluta dos cavalos selvagens (em "Cavalos Malhados") ou do urso. Três textos maravilhosos que ficam à espera de um tratamento editorial mais condizente com o lugar que ocupam na literatura deste século.

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