São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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John Updike corre perigo em "Brazil"

SÉRGIO SANT'ANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ainda no início de "Brazil", uma empregada, que também serve como amante do patrão, diz à sobrinha deste: "Seu tio é um homem bom. Se às vezes me bate, é porque está com raiva dele mesmo. É porque está furioso com a tensão de ser um homem rico num país pobre. Está frustrado, porque o país não oferece espaço para um homem como ele."
Se uma fala dessas, falsa até para a mais mirabolante novela de TV, causa estranheza no leitor com um mínimo de exigência, é coerente com uma história na qual uma loira de 19 anos, recém saída de um internato de freira, ao ser abordada na praia por um jovem negro e favelado, não só o leva ao apartamento do tal tio, com quem mora, em Ipanema, como, depois de um almoço de acarajé, vatapá, camarão e pimenta, servido pela empregada-psicóloga, entrega sua virgindade para ele. Mesmo para os loucos anos 60, quando se inicia a história, é demais.
Se fosse um escritor desconhecido a enviar um romance desses a uma editora, certamente teria seus originais devolvidos. Como se trata de John Updike, que, por toda a sua obra, jamais poderá ser tido como ingênuo, eis que se inaugura um esporte literário nacional, que é o de procurar os significados ocultos no livro, sob pena de sermos nós a passarmos como ingênuos. E, de fato, "Brazil" é um romance desconcertante, impermeável a uma leitura precipitada. E o leitor que não deixar o livro em suas primeiras engasgadas, poderá amá-lo mais adiante.
Como projeto explícito do autor, desde os nomes dos personagens principais, encontra-se o de tropicalizar, literalmente o mito celta, tantas vezes retomado, de Tristão e Isolda. O anel que o Tristão negro brasileiro oferece à Isabel, na praia, funciona como a poção mágica bebida pelos heróis do mito, que os deixa para sempre enamorados. A partir daí, como nos romances medievais, as aventuras mais rocambolescas se tornam permissíveis, mesmo os personagens serem aprisionados por bandeirantes em Goiás, ou trocarem as cores de suas respectivas peles, por obra de um pajé indígena, não sem antes passarem por São Paulo, onde Tristão trabalha numa industria automobilística, e Brasília, onde Isabel estuda na politizadíssima universidade.
Na verdade, estamos diante de uma alegoria ou rapsódia que tem como cenário e personagens o Brasil e os brasileiros, por sua vez emblemas agudos dos confrontos -aqui promíscuos- entre a civilização branca, ocidental, cristã, e as outras mais primitivas e menos afortunadas. Para a sua empreitada, o explorador alienígena - num sentido muito outro que o da superioridade imperial de um Kipling, ou mesmo de um Conrad - toma de empréstimo a linguagem, várias linguagens dos narradores nativos, num procedimento assumidamente pós-modernista: a apropriação de estilos, generos, épocas e tudo mais. É aí que Updike se equilibra numa corda bamba, de onde muitas vezes parece que irá se esborrachar em frases deslavadamente subliterárias como: "... a branca beleza dela que deslizava pelo quarto escuro como óleo viscoso, as duas valvulas lubrificadas que recebiam seu inhame colorido lá embaixo..." (inhame é de amargar). Como se uma literatura dos trópicos devesse possuir uma exuberância torrencial que chateia e dói, não fazendo justiça aos modelos creditados pelo autor, como Ruben Fonseca, Machado de Assis, Graciliano Ramos.
Porém, cuidado, porque atrás do barroquismo adjetivante que percorre o livro se abriga, às vezes com um humor quase imperceptível, uma intenção deliberada de receita parodística de Brasil, de representação grandiloquente, inclusive da política, manifesta por exemplo na voz de Euclides, meio-irmão de Tristão: "Animais como a gente em geral estão salvos dos atos de culpa burgueses. Marx diz que a filantropia doentia é pior do que a opressão direta, saudável, que pelo menos alerta a classe operária pra guerra que existe."
Curiosamente, em se tratando de um autor americano, é quando seus personagens se embrenham no sertão e na mata brasileiros -Tristão garimpa e Isabel se prostitui na Serra do Buraco, depois regridem a um Brasil de selvagens e bandeirantes, trocam de cor em sequências espetaculares, para finalmente retornarem ao país moderno, aburguesando-se -que a narrativa de Updike, como se o próprio autor fosse curtido pela viagem, ganha a sua consciência maior de alegria épica, romântica, política, e, desde então, manifestamente irônica: "Pai", interveio Isabel, "nós vivemos no meio dos índios algum tempo e eles não podiam ser mais bacanas. Com umas poucas exceções", acrescentou, lembrando os guaicurus que tinham roubado dois de seus filhos.
Um senso de humor que pode chegar à beira do hilariante, como no discurso da índia Ianopamoko: "A magia não pode ser generalizada...Não pode ser " - e a longa palavra terminou em tap- "política. Seu domínio é a alma pessoal, não uma nação ou um povo. Tem de haver um pedido, e procedimentos, uma consequência na qual tem de haver uma certa ambiguidade..." Ou ainda no clima de "Bye-bye Brasil" da cidade de Bunda da Fronteira, Mato Grosso, onde Tristão se torna leão-de-chácara, e Isabel se entrega a um sujeito que tem em seu quarto estatuetas de Jesus, Maria, São Sebastião, Elvis Presley, um Buda dourado e uma Kali de esmalte negro. Vencidas as resistências do "bom gosto" literário e do ciúme nacional, o leitor que atravesssar o emaranhado de cipós deste livro -que guarda também parentesco com "Macunaíma", "Viva o Povo Brasileiro", com o "Riverão Sussuarana", de Glauber Rocha, com o "Zero", de Inácio de Loyola, e com boa parte do Cinema Novo- poderá sair com a sensação de acabou de ler um romance dos mais corajosos e generosos, em que o autor, para escrevê-lo, desceu do seu seguro pedestal no realismo literário e reembaralhou todas as suas cartas para correr perigo num território conflagrado.

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