São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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A inquisição é o modelo do totalitarismo

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1215, o quarto Concílio de Latrão decide proibir o ordálio, ou juizo de Deus -o procedimento judicial que rogava ao Senhor que decidisse, entre duas partes, qual tinha a razão, mediante duelo, ou a prova de água (jogava-se o acusado na água, para ver se flutuava), ou a do fogo (ele pisava na brasa, para depois se ver se as feridas cicatrizavam ou não). Data desta decisão um recesso do divino no direito, que deverá, como mostra Joseph Langbein em seu interessante "Torture and the Law of Proof" (Chicago, EUA), pautar-se agora por critérios mais humanos, racionais, terrenos -especificamente, pela retomada da doutrina romana da prova, que, para condenar, exige duas testemunhas oculares, ou a confissão do culpado.
São estes os progressos da razão contra a dor, o avanço das luzes contra o obscurantismo? Nem tanto. Porque, calando-se Deus nos tribunais, e sendo difícil obter as tais duas testemunhas oculares, desde o século 13 teremos uma série de procedimentos visando a induzir à confissão, os quais incluem a própria tortura judicial. Esta desapareceu há 200 anos e se distingue da tortura policial, nossa conhecida, porque é um procedimento regular, ordenado por juiz, nos termos da lei.
Neste quadro nasce a Inquisição, tendo por dirigentes os "cães de Deus", ou "Domini cani" -dominicanos, discipulos de S. Domingos, na época os mais duros inimigos da heresia. Se há cruzadas que se fazem ao longe, na Terra Santa, não é menos grave o combate que se trava no seio da cristandade, contra os hereges. Numa dessas lutas, contra os cátaros do sudoeste da França, faz seu batismo de fogo a Inquisição, no começo do século 13.
Um século mais tarde, Nicolau Emérico escreve um manual para inquisidores, que 200 anos depois Francisco Peña atualizará. Nos dois casos, lemos a experiência do juiz combatendo o demônio e seus sequazes. A obra é inquietante, porque revela o que é um tribunal montado sobre o aparelho da confissão. Vale tudo, para que nenhum herege escape à pena. Assim, se os juízes prometem perdão a quem confessar, também nunca revelam ao suspeito que acusações pairam sobre ele.
Talvez o réu escape livre do tribunal, mas isso é dificil, porque, como ignora de que crimes é acusado, tenderá a fazer novas acusações, a si e aos outros, ao mesmo tempo que deixará de defender-se ou arrepender-se.das que lhe foram feitas. Enorme rede de intrigas e fofocas, até, mas destas que acarretam confisco dos bens, excomunhão e morte na fogueira -assim se tece em torno dos réus.
Houve interesses econômicos e políticos na Inquisição: econômicos, porque os bens do herege eram confiscados; políticos, porque isso se dava retroativamente, podendo alguém perder os bens ou até uma coroa de rei só porque um bisavô falecido há muito vem a ser condenado por heresia. Mas, se obviamente o "Manual" silencia sobre a estratégia, de que a Inquisição foi acusada por seus inimigos, ele nos revela sua lógica.
E aqui está o que nos surpreende nos inquisidores: diante do Diabo e do mal, da heresia que perseguem com toda a força, eles parecem desamparados. O inimigo usa magia e encantamento sobrenatural, A ele só resta a razão. Cada passo da Inquisição se baseia numa lógica precisa. Se o inquisidor deve ser astuto, é em resposta a astúcia mais forte, a do demônio.
Se o herege tem de seu lado o patrono diabólico, ao juiz nunca acodem Deus nem os santos: está só com sua razão . Se Chesterton tiver acertado ao dizer que o louco é quem tudo perdeu menos a razão, poderemos parafraseá-lo dizendo que a Inquisição é um formidável aparato racional que leva ao extremo princípios que, estes sim, a nós soam irracionais, como a crença nos poderes do diabo e do mal, tudo o que resta ao inquisidor é a sua razão.
Dessa razão, ele dirá com frequência o quanto é frágil. Como ela não se radicaliza, o que só ocorrerá na modernidade, como não examina seus próprios princípios, fica subordinada a uma máquina paranóica, na qual o ponto de partida maniqueísta tudo determina. Mas conviria, para concluir, acentuar dois pontos. Primeiro -e era essa tese do professor da Sorbonne Louis Sala-Molins, tradutor para o francês desta obra nos anos 70: a Inquisição é o modelo do totalitarismo moderno . Em sua perseguição ao suspeito, ela define o formato que seguirão as ditaduras mais duras do nosso tempo, fascistas, comunistas.
Segundo ponto: a culpa do outro talvez tenha, por condição simétrica, a convicção íntima da própria fragilidade do inquisidor. Um mundo submetido à culpa seria, assim, apenas um mundo governado por almas covardes e fracas. Só por isso, vale a pena investigar os inquisidores do passado.

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