São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994 |
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A inquisição é o modelo do totalitarismo
RENATO JANINE RIBEIRO
São estes os progressos da razão contra a dor, o avanço das luzes contra o obscurantismo? Nem tanto. Porque, calando-se Deus nos tribunais, e sendo difícil obter as tais duas testemunhas oculares, desde o século 13 teremos uma série de procedimentos visando a induzir à confissão, os quais incluem a própria tortura judicial. Esta desapareceu há 200 anos e se distingue da tortura policial, nossa conhecida, porque é um procedimento regular, ordenado por juiz, nos termos da lei. Neste quadro nasce a Inquisição, tendo por dirigentes os "cães de Deus", ou "Domini cani" -dominicanos, discipulos de S. Domingos, na época os mais duros inimigos da heresia. Se há cruzadas que se fazem ao longe, na Terra Santa, não é menos grave o combate que se trava no seio da cristandade, contra os hereges. Numa dessas lutas, contra os cátaros do sudoeste da França, faz seu batismo de fogo a Inquisição, no começo do século 13. Um século mais tarde, Nicolau Emérico escreve um manual para inquisidores, que 200 anos depois Francisco Peña atualizará. Nos dois casos, lemos a experiência do juiz combatendo o demônio e seus sequazes. A obra é inquietante, porque revela o que é um tribunal montado sobre o aparelho da confissão. Vale tudo, para que nenhum herege escape à pena. Assim, se os juízes prometem perdão a quem confessar, também nunca revelam ao suspeito que acusações pairam sobre ele. Talvez o réu escape livre do tribunal, mas isso é dificil, porque, como ignora de que crimes é acusado, tenderá a fazer novas acusações, a si e aos outros, ao mesmo tempo que deixará de defender-se ou arrepender-se.das que lhe foram feitas. Enorme rede de intrigas e fofocas, até, mas destas que acarretam confisco dos bens, excomunhão e morte na fogueira -assim se tece em torno dos réus. Houve interesses econômicos e políticos na Inquisição: econômicos, porque os bens do herege eram confiscados; políticos, porque isso se dava retroativamente, podendo alguém perder os bens ou até uma coroa de rei só porque um bisavô falecido há muito vem a ser condenado por heresia. Mas, se obviamente o "Manual" silencia sobre a estratégia, de que a Inquisição foi acusada por seus inimigos, ele nos revela sua lógica. E aqui está o que nos surpreende nos inquisidores: diante do Diabo e do mal, da heresia que perseguem com toda a força, eles parecem desamparados. O inimigo usa magia e encantamento sobrenatural, A ele só resta a razão. Cada passo da Inquisição se baseia numa lógica precisa. Se o inquisidor deve ser astuto, é em resposta a astúcia mais forte, a do demônio. Se o herege tem de seu lado o patrono diabólico, ao juiz nunca acodem Deus nem os santos: está só com sua razão . Se Chesterton tiver acertado ao dizer que o louco é quem tudo perdeu menos a razão, poderemos parafraseá-lo dizendo que a Inquisição é um formidável aparato racional que leva ao extremo princípios que, estes sim, a nós soam irracionais, como a crença nos poderes do diabo e do mal, tudo o que resta ao inquisidor é a sua razão. Dessa razão, ele dirá com frequência o quanto é frágil. Como ela não se radicaliza, o que só ocorrerá na modernidade, como não examina seus próprios princípios, fica subordinada a uma máquina paranóica, na qual o ponto de partida maniqueísta tudo determina. Mas conviria, para concluir, acentuar dois pontos. Primeiro -e era essa tese do professor da Sorbonne Louis Sala-Molins, tradutor para o francês desta obra nos anos 70: a Inquisição é o modelo do totalitarismo moderno . Em sua perseguição ao suspeito, ela define o formato que seguirão as ditaduras mais duras do nosso tempo, fascistas, comunistas. Segundo ponto: a culpa do outro talvez tenha, por condição simétrica, a convicção íntima da própria fragilidade do inquisidor. Um mundo submetido à culpa seria, assim, apenas um mundo governado por almas covardes e fracas. Só por isso, vale a pena investigar os inquisidores do passado. Texto Anterior: John Updike corre perigo em "Brazil" Próximo Texto: Um lugar para a voz do poeta Índice |
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