São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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Minorias que querem demais

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Os Estados Unidos são provavelmente o país onde a luta em prol dos direitos de minorias ou grupos sociais há muito discriminados, como mulheres, negros e homossexuais, está mais avançada. Não é à toa, portanto, que seja lá também que começam a se revelar seus paradoxos e contradições. Julgamentos que, de alguma forma, envolvam a questão do estupro têm se tornado verdadeiras causas célebres em torno das quais as feministas concentram sua militância. Observa-se, no pensamento delas, a importância crescente de duas tendências: a de ampliar o conceito de estupro; e a de considerá-lo um crime de gravidade infinitamente maior do que a que se atribui habitualmente.
A definição ampliada inclui não só o estupro marital e o "date rape" (praticado por namorado ou conhecido), mas estende-se de fato ao "sexual hassment" (molestamento). Assim já não se trata de um crime cometido por um homem contra uma mulher, mas de algo perpetuado ininterruptamente por todos os homens contra todas a mulheres, incluindo-se aí toda e qualquer manifestação do desejo masculino, mesmo verbal. Todas as mulheres seriam vítimas perpétuas de estupro, que não precisa em geral de mais prova - frequentemente de menos - do que um ato sexual consumado. Entende-se, então, que nos casos de estupro marital ou de "date rape", onde quase sempre a única testemunha é a própria vítima, consolide-se o princípio de "in dubio pro victima", ou seja, em caso de dúvida condena-se o réu.
O estupro, porém, era considerado tradicionalmente um crime grave e até mesmo hediondo, apesar de não causar mais dano físico à vítima que outros tipos de agressão. Tal gravidade decorria do valor emprestado à esfera sexual por determinadas concepções morais que nela situavam o âmago mesmo da "honra" feminina, e só se configurava no caso de mulher "honesta", isto é, solteira virgem, casada fiel ou viúva casta. Se a vítima não preenchesse esse requisito de honestidade, o estupro continuava sendo crime, mas perdia sua gravidade. "Honra" é conceito vago, mas a localização genital que agravava o estupro era a mesma que inocentava, por meio da noção de sua "legítima defesa", o assassino de uma esposa adúltera.
Uma das bandeiras do movimento de emancipação feminina sempre foi a liberalização da conduta sexual, o que pressupunha o rompimento com uma determinada moral normativa e a consequente erradicação da exigência legal e social de virgindade, fidelidade ou castidade. A nova moral, que vigora em boa parte do Ocidente, envolve a dessacralização e a desmistificação da sexualidade. Ao que consta, o movimento feminista não rompeu explicitamente com esse ideário que, logicamente, conduziria à relativização do crime de estupro, restringindo sua definição e diminuindo sua gravidade. Mas o que as feministas parecem propor é uma ressacralização seletiva da sexualidade para que o comportamento feminino seja regido pela nova moral e o masculino julgado - e condenado - pela antiga.
Há militantes do movimento negro que, por sua vez, vêm exigindo não mais a igualdade de direitos e sim direitos extras, referentes só a eles. Alguns foram conseguidos: por exemplo, a implantação de quotas mínimas obrigatórias de negros em universidades ou firmas, independentemente dos méritos acadêmicos ou profissionais dos candidatos. O que reivindicam atualmente - difícil saber com quanta seriedade - é uma indenização monetária pelos anos de escravidão de seus ancestrais e pelo fato de terem sido eles "sequestrados" do continente africano.
Eles alegam também que os responsáveis pela escravidão de negros são, coletivamente, todos os brancos ocidentais e somente eles. A escravização em massa de negros africanos já era praticada, contudo, pelos árabes em particular e pelo Islã em geral, centenas de anos antes da descoberta das Américas; e certos paises árabes estiveram entre os últimos a aboli-la. Até meados do século passado, os europeus e seus descendentes continuavam impedidos de penetrar no continente africano para além do litoral por uma barreira de moléstias às quais os nativos eram relativamente imunes. Durante séculos os cativos foram capturados, escravizados e vendidos aos traficantes brancos principalmente por outros negros. Se havia brancos "corruptores", havia também negros "corruptos".
É lícito pedir indenizaççao apenas aos corruptores? Parte substancial da população branca das Américas chegou depois da abolição. O que tem ela a ver com esse problema? Os proprietários de escravos eram uma classe pequena e restrita. Devem-se condenar os descendentes dos não-proprietários? Se a legitimidade da indenização retroativa for reconhecida, essas perguntas surgirão. As questões centrais, no entanto, são mais simples: pode-se atribuir culpa coletiva a uma raça devido a crueldades cometidas por alguns de seus membros há mais de um século? Deve algum grupo ter direitos preferenciais derivados das injustiças perpetradas contra seus ancestrais?
Poucos grupos sociais foram, no correr da história ocidental, tão maltratados, humilhados e obrigados a se ocultar quanto os homossexuais de ambos os sexos. Sua conduta foi sucessivamente considerada pecaminosa, imoral, doente ou anormal e condizentemente punida. Clérigos, moralistas, médicos e psicanalistas se sentiram autorizados a pontificar sobre eles. Os legisladores também lhes concederam atenção especial, transformando em crime o que só diz respeito aos participantes.
Depois de séculos de vilipêndio sem direito a resposta, é compreensível que eles temam ter sua imagem posta em questão. Seus protestos recentes, porém, mostram que eles se sentem coletivamente ofendidos pela mera presença de um personagem homossexual negativo em algum filme. Sua reivindicação de visibilidade e de plena aceitação tem algo de impositivo e de quase irrealizável, pois tudo indica que, mesmo quando for abolida a discriminação, os homossexuais - até por vontade própria - continuarão constituindo uma minoria à parte, vista, senão com preconceito, ao menos com estranheza pela maioria heterossexual.
Essa estranheza talvez venha a ter implicações práticas. Caso se confirmem as hipóteses atuais segundo as quais o homossexualismo tem um componente genético ou congênito, e tão logo esta possa ser verificada, através de exames pré-natais, pais heterossexuais poderão optar pelo aborto. A maioria dos heterossexuais preferirá, sem dúvida, não ter filhos homossexuais. Alguns militantes já se apereceberam disso e, usando terminologia semelhante à do Papa, confessaram temer um "genocídio" ou "holocausto" dos homossexuais não-nascidos.
Com defensores naturais do sexo, eles não podem coerentemente se contrapor ao aborto e, se lhes interessa a existência de uma geração seguinte de homossexuais, terão que arcar com seus custos, seja praticando uma sexualidade reprodutiva, seja financiando bebês de proveta e barrigas de aluguel.
Entre os grupos acima parece se acentuar hoje em dia a reinvidicação de direitos maiores que os do restante da população e/ou uma confusão acerca do que pertence à esfera privada ou pública. Curiosamente, esses são os mesmos grupos que, a partir dos anos 60, pensadores como Marcuse - emulando a tese marxista de que o proletariado era a classe revolucionária - começaram a ver como detentores de valores progressistas, chegando ao paroxismo de conferir sentido político positivo a tal ou qual conduta sexual. As exigências das alas mais radicais desses grupos - num país como os EUA, não o Brasil onde a luta pelos direitos mal engatinha, se tanto - levanta a suspeita de que conquistas como a igualdade de direitos e a separação rigorosa entre o que é público ou privado já não lhes bastam. Almeja-se a aquisição de direitos suplementares garantidos por um acesso preferencial à esfera pública e justificados por sofrimentos ou injustiças ancestrais. Isso pode até ser conseguido, mas às custas do principio da igualdade que subjaz à democracia. Direitos suplementares e acesso preferencial à esfera pública têm um nome antigo: privilégio.
Feministas ressacralizando moralisticamente a sexualidade, militantes negros atribuindo culpas coletivas a toda uma raça e homossexuais pensando em recorrer à censura ou criticando o aborto: nenhum grupo, sexo, minoria ou classe é inerentemente progressista. A experiência da discriminação e da opressão tampouco gera uma consciência democrática. A democracia é uma escolha voluntária, não um atributo. A longo prazo, porém, só ela é capaz de impedir, não a manifestação privada de machismo, racismo e homofobia, mas qualquer discriminação pública de mulheres, negros e homossexuais.

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