São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994 |
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Livro faz apologia do uso "cosmético" Best-seller divulga noção discutível de doença mental DAVID J. ROTHMAN
Alguns anedotas infundem vida às cifras. Eu expresso minha irritação com um encanador, e ele me manda tomar Prozac. Pergunto ao garçom de um restaurante favorito meu em Nova York como ele está e ele me diz que vai muito melhor - que o verão foi péssimo mas que agora ele está tomando Prozac. Meu filho conta que o apartamento de um amigo seu foi arrombado. Os ladrões deixaram o computador mas levaram os estoques de Prozac. Peter Kramer não participou do lado científico da criação do Prozac, nem tampouco das avaliações profissionais de sua segurança e eficácia. Mas ele foi o primeiro a escrever, em linguagem popular, sobre as transformações ocorridas com o uso do Prozac, baseando-se nos históricos casos de cerca de uma dúzia de seus pacientes psiquiátricos. Em sua ótica, quase todos estes casos são histórias bem-sucedidas. O que surpreende em "Listening to Prozac" não é a profundidade das respostas de Kramer (este não é um livro sutil, de maneira alguma), mas sua pronta aceitação da "psicofarmacologia cosmética". A cautela médica diante de uma droga nova e poderosa não impõe limites a Kramer, nem tampouco o fato de que muitos de seus pacientes não são doentes, em termos de classificações psiquiátricas clássicas. Veja alguns exemplos do que significa receitar Prozac como "psicofarmacologia cosmética". Uma consulta à paciente Tess, que não está em depressão no momento mas que já foi considerada clinicamente deprimida, despertou uma "coceira clínica" em Kramer. A principal reclamação de Tess era estar insatisfeita com a maneira pela qual manejava as negociações de sua empresa com o sindicato. Quando Kramer lhe indagou sobre seu namorado, ela começou a chorar. Admitindo que estas são bases muito tênues para a prescrição de um medicamento, Kramer explica que ele pratica a "arte" da medicina e prescreve Prozac. Além disso, "Quem sou eu para negar-lhe o acesso às conquistas da ciência?" Em questão de semanas Tess já estava saindo com vários homens e tratando com o sindicato inflexível sem se posicionar na defensiva. Ela sentiu que adquirira a capacidade de avaliar e tomar decisões, e pouco depois foi recompensada com um aumento salarial substancial. Gail, que tomava comprimidos para dores de cabeça, ansiedade e insônia, sentiu que Prozac reduziu sua necessidade de tomar outras medicações. Ela pediu a Kramer que aumentasse a dosagem, para que ela pudesse candidatar-se ao cargo de chefe de seu departamento no hospital em que trabalhava. Kramer não estava certo de que o aumento da dose pudesse ajudá-la, "mas não vi motivo para não experimentar". Gail perdeu o concurso, "mas conseguiu aceitar a derrota sem se abalar". Até agora pelo menos, o Prozac parece fazer o que faz sem aumentar, como fazem os agentes tricíclicos, o risco de arritmia cardíaca, quedas potencialmente fatais na pressão sanguínea e mortes por overdose. Mas frequentemente (entre 20% e 30% das vezes) o Prozac provoca náuseas e diarréia, e num número ainda desconhecido de casos causa disfunção sexual (especificamente, a incapacidade de atingir o orgasmo). Assim, embora Kramer admita periodicamente que "nenhuma droga é isenta de riscos", e reconheça que o Prozac está no mercado há apenas seis anos, ele se sente inteiramente à vontade com seu "perfil benigno em termos de efeitos colaterais", e às vezes comete o lapso de descrever a "ausência de efeitos colaterais" do Prozac. Kramer se sente ainda mais justificado em utilizar Prozac "cosmeticamente" devido à sua afirmação inicial (que ele contradiz posteriormente) de que a droga restaura os pacientes a seu estado original, ostensivamente não patológico. "O Prozac", ele escreve, "parecia conferir a confiança social aos habitualmente mais tímidos". A droga revelou "o que era biologicamente determinado neles e o que era meramente resultado de experiências vividas" (a experiência seria "mera" quando comparada à fisiologia celular). Depois de usarem a droga os pacientes recuperavam seu verdadeiro eu, e aquele eu invariavelmente revelava ser mais extrovertido, confiante e com maior capacidade de recuperação. A questão óbvia é como Kramer, seus pacientes ou qualquer outra pessoa são capazes de diferenciar o temperamento do caráter. Kramer afirma apenas que o "verdadeiro eu" é o que toma a droga. Graças precisamente a suas novas e especiais qualidades, o Prozac ameaça as práticas psiquiátricas tradicionais. Ele age rapidamente demais (em duas ou três semanas, contra dois ou três anos no caso da psicoterapia), é independente demais do "insight" dos pacientes e contrário demais às normas culturais, na medida em que vem sob a forma de um comprimido e que seus benefícios não são "merecidamente conquistados". Em suma, o Prozac subverte os fundamentos da psicoterapia. Por que gastar tempo, dinheiro e energia para entrar num relacionamento intenso com o psicoterapeuta, se os mesmos resultados - de fato, resultados melhores - podem ser obtidos tomando-se um comprimido sem efeitos colaterais? Incapaz de defender o argumento de que o Prozac traz à tona o "verdadeiro eu", Kramer passou a oferecer paradigmas. Ele invoca um modelo explanatório para a doença mental que se baseia na biologia da espécie, não apenas no histórico da vida do paciente. Kramer reúne as evidências que pode da psiconeurologia para fortalecer o argumento favorável à definição de doença mental em termos de manifestações tangíveis, materialistas e celulares. A própria expressão "psicofarmacologia cosmética" suscita o fantasma de um tipo de intervenção médica dirigido preferencialmente a um dos sexos, e isto se evidencia ainda mais claramente quando o diagnóstico em questão é a depressão. Aproximadamente dois terços dos pacientes classificados como sofrendo de depressão clínica são mulheres. A maioria das histórias contadas por Kramer diz respeito a mulheres. Apesar do interesse que manifesta pela neurofisiologia, ele não segue os passos de seus predecessores do século 19 ao procurar identificar uma base fisiológica para a preponderância de mulheres que sofrem depressão. Na verdade, para defender-se de acusações de ser um S. Weir Mitchell contemporâneo, o neurologista do século 19 que mantinha seus pacientes neurastênicos na cama por semanas a fio, Kramer contrasta o Prozav com Valium e Librium. Os sedativos dos anos 50 e 60, também conhecidos como "os pequenos ajudantes da mamãe", levavam as mulheres a se resignarem à monotonia e ao cansaço de suas vidas domésticas. Já o Prozac e outras drogas de seu tipo são "drogas feministas, que liberam e dão poder à pessoa que os toma". Não existe sutileza na defesa que Kramer faz do Prozac para as mulheres. Uma crítica feminista a Kramer consideraria, com razão, que o Prozac reforça os valores da agressão e da ambição egoísta. Nas histórias que ele conta, o Prozac aparece não apenas como uma droga que confere características masculinas, mas também como uma droga quintessencialmente americana. Ela não aumenta o prazer nem traz felicidade, mas promove a competitividade eficiente. Nada disto parece incomodar Kramer. Ele está convencido de que o fantasma do controle social não tem importância diante da "alegria nos rostos dos pacientes". Quando o lemos, lembramos que a psiquiatria, tanto nos consultórios particulares quanto nos asilos, assume como sua missão adaptar os pacientes às normas prevalecentes, e quando necessário, fazer estas normas serem aplicadas. Tradução Clara Allain Texto Anterior: "Fiquei 100%", diz brasileira Próximo Texto: O admirável mundo velho das drogas Índice |
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