São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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Livro faz apologia do uso "cosmético"

Best-seller divulga noção discutível de doença mental

DAVID J. ROTHMAN
DA "THE NEW REPUBLIC"

Prozac e o livro "Listening to Prozac" se tornaram best-sellers. Na verdade, as sortes do livro e da droga estão tão interligadas que é impossível falar num sem mencionar o outro. O sucesso comercial alcançado pelo Prozac é surpreendente. Começou a ser vendido em dezembro de 1987 como antidepressivo (a droga foi criada em laboratórios, não fruto de uma descoberta empírica acidental) e já foi usada por cerca de 10 milhões de pessoas, mais da metade das quais nos Estados Unidos. Só em 1989, o Prozac foi receitado em 382 mil consultas psiquiátricas, ou seja, quase um terço das consultas nas quais foi receitado um medicamento antidepressivo.
Alguns anedotas infundem vida às cifras. Eu expresso minha irritação com um encanador, e ele me manda tomar Prozac. Pergunto ao garçom de um restaurante favorito meu em Nova York como ele está e ele me diz que vai muito melhor - que o verão foi péssimo mas que agora ele está tomando Prozac. Meu filho conta que o apartamento de um amigo seu foi arrombado. Os ladrões deixaram o computador mas levaram os estoques de Prozac.
Peter Kramer não participou do lado científico da criação do Prozac, nem tampouco das avaliações profissionais de sua segurança e eficácia. Mas ele foi o primeiro a escrever, em linguagem popular, sobre as transformações ocorridas com o uso do Prozac, baseando-se nos históricos casos de cerca de uma dúzia de seus pacientes psiquiátricos. Em sua ótica, quase todos estes casos são histórias bem-sucedidas.
O que surpreende em "Listening to Prozac" não é a profundidade das respostas de Kramer (este não é um livro sutil, de maneira alguma), mas sua pronta aceitação da "psicofarmacologia cosmética". A cautela médica diante de uma droga nova e poderosa não impõe limites a Kramer, nem tampouco o fato de que muitos de seus pacientes não são doentes, em termos de classificações psiquiátricas clássicas.
Veja alguns exemplos do que significa receitar Prozac como "psicofarmacologia cosmética". Uma consulta à paciente Tess, que não está em depressão no momento mas que já foi considerada clinicamente deprimida, despertou uma "coceira clínica" em Kramer. A principal reclamação de Tess era estar insatisfeita com a maneira pela qual manejava as negociações de sua empresa com o sindicato.
Quando Kramer lhe indagou sobre seu namorado, ela começou a chorar. Admitindo que estas são bases muito tênues para a prescrição de um medicamento, Kramer explica que ele pratica a "arte" da medicina e prescreve Prozac. Além disso, "Quem sou eu para negar-lhe o acesso às conquistas da ciência?" Em questão de semanas Tess já estava saindo com vários homens e tratando com o sindicato inflexível sem se posicionar na defensiva. Ela sentiu que adquirira a capacidade de avaliar e tomar decisões, e pouco depois foi recompensada com um aumento salarial substancial.
Gail, que tomava comprimidos para dores de cabeça, ansiedade e insônia, sentiu que Prozac reduziu sua necessidade de tomar outras medicações. Ela pediu a Kramer que aumentasse a dosagem, para que ela pudesse candidatar-se ao cargo de chefe de seu departamento no hospital em que trabalhava. Kramer não estava certo de que o aumento da dose pudesse ajudá-la, "mas não vi motivo para não experimentar". Gail perdeu o concurso, "mas conseguiu aceitar a derrota sem se abalar".
Até agora pelo menos, o Prozac parece fazer o que faz sem aumentar, como fazem os agentes tricíclicos, o risco de arritmia cardíaca, quedas potencialmente fatais na pressão sanguínea e mortes por overdose. Mas frequentemente (entre 20% e 30% das vezes) o Prozac provoca náuseas e diarréia, e num número ainda desconhecido de casos causa disfunção sexual (especificamente, a incapacidade de atingir o orgasmo). Assim, embora Kramer admita periodicamente que "nenhuma droga é isenta de riscos", e reconheça que o Prozac está no mercado há apenas seis anos, ele se sente inteiramente à vontade com seu "perfil benigno em termos de efeitos colaterais", e às vezes comete o lapso de descrever a "ausência de efeitos colaterais" do Prozac.
Kramer se sente ainda mais justificado em utilizar Prozac "cosmeticamente" devido à sua afirmação inicial (que ele contradiz posteriormente) de que a droga restaura os pacientes a seu estado original, ostensivamente não patológico. "O Prozac", ele escreve, "parecia conferir a confiança social aos habitualmente mais tímidos". A droga revelou "o que era biologicamente determinado neles e o que era meramente resultado de experiências vividas" (a experiência seria "mera" quando comparada à fisiologia celular). Depois de usarem a droga os pacientes recuperavam seu verdadeiro eu, e aquele eu invariavelmente revelava ser mais extrovertido, confiante e com maior capacidade de recuperação.
A questão óbvia é como Kramer, seus pacientes ou qualquer outra pessoa são capazes de diferenciar o temperamento do caráter. Kramer afirma apenas que o "verdadeiro eu" é o que toma a droga.
Graças precisamente a suas novas e especiais qualidades, o Prozac ameaça as práticas psiquiátricas tradicionais. Ele age rapidamente demais (em duas ou três semanas, contra dois ou três anos no caso da psicoterapia), é independente demais do "insight" dos pacientes e contrário demais às normas culturais, na medida em que vem sob a forma de um comprimido e que seus benefícios não são "merecidamente conquistados".
Em suma, o Prozac subverte os fundamentos da psicoterapia. Por que gastar tempo, dinheiro e energia para entrar num relacionamento intenso com o psicoterapeuta, se os mesmos resultados - de fato, resultados melhores - podem ser obtidos tomando-se um comprimido sem efeitos colaterais?
Incapaz de defender o argumento de que o Prozac traz à tona o "verdadeiro eu", Kramer passou a oferecer paradigmas. Ele invoca um modelo explanatório para a doença mental que se baseia na biologia da espécie, não apenas no histórico da vida do paciente.
Kramer reúne as evidências que pode da psiconeurologia para fortalecer o argumento favorável à definição de doença mental em termos de manifestações tangíveis, materialistas e celulares.
A própria expressão "psicofarmacologia cosmética" suscita o fantasma de um tipo de intervenção médica dirigido preferencialmente a um dos sexos, e isto se evidencia ainda mais claramente quando o diagnóstico em questão é a depressão. Aproximadamente dois terços dos pacientes classificados como sofrendo de depressão clínica são mulheres.
A maioria das histórias contadas por Kramer diz respeito a mulheres. Apesar do interesse que manifesta pela neurofisiologia, ele não segue os passos de seus predecessores do século 19 ao procurar identificar uma base fisiológica para a preponderância de mulheres que sofrem depressão.
Na verdade, para defender-se de acusações de ser um S. Weir Mitchell contemporâneo, o neurologista do século 19 que mantinha seus pacientes neurastênicos na cama por semanas a fio, Kramer contrasta o Prozav com Valium e Librium. Os sedativos dos anos 50 e 60, também conhecidos como "os pequenos ajudantes da mamãe", levavam as mulheres a se resignarem à monotonia e ao cansaço de suas vidas domésticas. Já o Prozac e outras drogas de seu tipo são "drogas feministas, que liberam e dão poder à pessoa que os toma".
Não existe sutileza na defesa que Kramer faz do Prozac para as mulheres. Uma crítica feminista a Kramer consideraria, com razão, que o Prozac reforça os valores da agressão e da ambição egoísta. Nas histórias que ele conta, o Prozac aparece não apenas como uma droga que confere características masculinas, mas também como uma droga quintessencialmente americana. Ela não aumenta o prazer nem traz felicidade, mas promove a competitividade eficiente.
Nada disto parece incomodar Kramer. Ele está convencido de que o fantasma do controle social não tem importância diante da "alegria nos rostos dos pacientes". Quando o lemos, lembramos que a psiquiatria, tanto nos consultórios particulares quanto nos asilos, assume como sua missão adaptar os pacientes às normas prevalecentes, e quando necessário, fazer estas normas serem aplicadas.
Tradução Clara Allain

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