São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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Dia D, decisão ou decepção

Chegou finalmente o Dia D, a hora do ataque frontal à inflação. O governo batalhou nos últimos meses para garantir as condições adequadas ao ataque. Amanhã, com o lançamento da Unidade Real de Valor (URV), começa de fato a transição rumo à nova moeda do Brasil.
Talvez nunca se tenha alcançado, às vésperas de outros planos, condições tão favoráveis do ponto de vista econômico. Em primeiro lugar, destaca-se o nível sem precedentes das reservas internacionais em poder do Banco Central. Isso significa que o governo tem poder de fogo contra os especuladores. Pode aumentar as importações e garantir que as cotações do dólar permaneçam estáveis em termos de URV. É a chamada "âncora cambial".
Quanto às contas públicas, deve-se reconhecer que após vários meses de negociação com o Congresso e outras lideranças, o esforço de aumento da arrecadação e combate à sonegação, o aumento de alíquotas e redução de prazos e o Fundo Social de Emergência também colocam o governo numa situação de vantagem frente às tentativas anteriores de estabilização.
Em muitos "pacotes" anteriores a economia foi sacudida, às vésperas, por tarifaços e maxidesvalorizações cambiais. A muitos sempre pareceu óbvio que iniciar uma etapa de estabilização com uma máxi ou tarifaço era injetar pressões inflacionárias na pior hora. Dessa vez, entretanto, a situação das tarifas públicas é relativamente tranquila. A tal ponto que mesmo convertidas à URV pela média ainda garantem às estatais a saúde financeira indispensável.
Quanto à taxa de câmbio, a performance do comércio exterior brasileiro é a evidência maior de que não há nada de preocupante. Enquanto países já estabilizados como México e Argentina têm dificuldades, sem alcançar posições superavitárias no comércio exterior, o Brasil tem reafirmado uma vocação fortemente competitiva, mesmo sob um ambiente superinflacionário e de incremento das importações.
Finalmente, há as vantagens do compromisso com a liberdade de preços, que vem sendo respeitado pelo governo apesar das dificuldades políticas. É provável que muitos setores tenham formado, ao longo dos últimos meses e semanas, margens de segurança que permitirão não apenas "suportar" a estabilidade, mas principalmente colaborar com ela, à medida que a URV trouxer transparência ao jogo real entre a oferta e a procura.
Há expectativas de que a demanda permaneça contida. Justamente o contrário de planos anteriores (como o Cruzado), quando se tentava estabilizar a economia com demanda aquecida. A perspectiva de juros reais ainda mais elevados nas próximas semanas reforça a impressão de que, a partir de agora, as empresas vão operar numa economia com salários estabilizados na média e mercados incapazes de sancionar puxadas de preços.
Com todos esses fatores favoráveis, não há quem duvide da capacidade do governo de obter considerável sucesso no curto e mesmo no médio prazo. A fase de transição entre a URV e a nova moeda, cuja duração pode alcançar até 90 dias, culminaria portanto numa inflação bastante baixa -medida em URVs.
Entretanto, cabe aqui uma dúvida legítima, presente na consciência de milhões de brasileiros que já tiveram de suportar as mais mirabolantes experiências de política econômica. Ninguém duvida da capacidade do governo de derrubar a inflação. Isso já ocorreu várias vezes. Mas o Dia D é também o dia em que se renova a dúvida: a inflação baixa, mas até quando?
Amanhã, a sociedade ingressará nessa nova experiência com o entusiasmo condicionado por essa dúvida. Inquietação, aliás, justificada não apenas pelo passado como por uma fragilidade das circunstâncias a que é bom estar atento. Fragilidade, antes de tudo, política, como revelam as sucessivas dificuldades no encaminhamento do ajuste fiscal e que estão ainda longe de se esgotar. Qual será o valor do salário mínimo e que impactos terá sobre o Orçamento de 1994? Quando será esse mesmo Orçamento aprovado pelo Congresso? Quais as reais perspectivas de aumento da arrecadação num ano de crescimento econômico mais modesto? Como o governo tratará a entrada de recursos externos, com impactos inflacionários? E qual a credibilidade do compromisso com a austeridade num ano eleitoral que promete disputas de virulência indisfarçável?
São incertezas, tanto técnicas quanto políticas, que se devem contrapor com rigor às vantagens da situação atual frente a tentativas anteriores. Para que as dúvidas desse Dia D decisivo não venham a ser, mais uma vez, também o prenúncio de uma grande decepção.

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