São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Problemas na coluna

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Nada a ver com a coluna que herdei do Otto Lara Resende. Além da coluna na Folha, Otto tinha a própria coluna e foi ela que lhe deu problemas. Uma operação, dizem que equivocada, e ele se foi inesperadamente, privando-nos de sua prosa admirável e de sua encantadora personalidade.
Por urucubaca ou caveira de burro, herdei-lhe a coluna e o problema. Passei uma semana dos diabos, uma tal de L5 –que nunca soubera existir dentro do meu corpo– resolveu comprimir um nervo e isso me obrigou a experimentar poções abomináveis e a recusar conselhos disparatados.
Fiquei sabendo o essencial: o homem ficou em pé há um milhão e 700 mil anos –e foi afobado. Deveria ter esperado uns 800 anos a mais para ter a coluna em condições de suportar o peso da cabeça e do resto. O "homo erectus" foi um erro da natureza que não faz saltos, "natura non facit saltus". A pressa teve alto custo e baixo benefício: liberou as patas dianteiras para escrever e lutar boxe.
O mais sensato para curar a minha crise –e, por extensão, impedir que a humanidade continue errada– seria voltar à posição dos quadrúpedes. Se eu tivesse 20 anos menos até que tentaria, mas já passei da idade de tentar consertar as coisas erradas da vida e do mundo. Evidente que espantaria a todos, vir para o trabalho, ir à praia de quatro. Não faltariam aqueles que me louvariam, achando que afinal eu assumira minha natural postura.
Em compensação, minhas setters Mila e Titi apreciariam a novidade, seria um "plus" em nosso relacionamento. Alguém tem de ser o primeiro a andar de quatro. Oitocentos anos não custam tanto a passar e haverá tempo para que móveis, casas e cidades sejam adaptados à escala do "homo non erectus sed sapiens".
Disse acima que alguém precisa ser o primeiro e, honestamente, essa missão não faz parte do meu projeto de vida. Mesmo assim, a dor tem limites –os torturadores sabem que, a partir de certo ponto, o torturado confessa ter matado o pai, estrupado a mãe, profanado lugares santos. Se a dor continuar me aporrinhando, eu não respondo por mim.

Texto Anterior: O nome da rosa
Próximo Texto: EFEITOS COLATERAIS; DIRETAS SEGUNDO FIGUEIREDO; SENTIMENTAL EU SOU
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.