São Paulo, terça-feira, 1 de março de 1994
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Estabilização passo a passo

ANTONIO KANDIR

Em meio às incertezas que estamos vivendo com a introdução da URV, não é sem utilidade uma análise prospectiva sobre o estado da economia no futuro previsível. Divido essa análise em três momentos: 1) o estado da economia daqui até a emissão do real, a nova moeda; 2) o estado da economia nos meses seguintes; 3) a economia a longo prazo, com ênfase na possibilidade de o real ser confiável ao longo do tempo.
Ninguém deve alimentar ilusões acerca do primeiro momento. À medida que afeta o sistema de indexação vigente, a introdução da URV tende a acentuar o conflito distributivo e a produzir alguma aceleração da inflação em cruzeiros reais. Como reação, o governo tenderá a lançar mão de taxas de juros ainda mais elevadas, para acomodar preços e salários em patamares os mais próximos possíveis à situação anterior à introdução da URV. Afora esses males, a introdução da URV gera problemas para o funcionamento das empresas e as operações domésticas, criando dúvida, incerteza, irritação.
É nesse contexto que o Congresso será chamado a decidir, em ano eleitoral, sobre questões fundamentais para a sobrevivência do plano de estabilização.
Dentre essas questões, está o salário mínimo. Nessa matéria, o plano joga uma grande cartada. Ninguém contesta que seria desejável um salário mínimo bastante superior ao vigente. Mas qualquer escorregão pode ser fatal, à medida que cada dólar a mais representa um acréscimo da ordem de US$ 150 milhões nas despesas da Previdência. Isso significa que um salário mínimo de US$ 84 produziria um rombo orçamentário da ordem de US$ 3 bilhões.
Vê-se, portanto, que, ao contrário das experiências anteriores de estabilização, o Plano FHC não produz ganhos imediatos e tende a provocar, de início, mais oposição que apoio. A questão é: vale a pena suportar as agruras desse primeiro momento que se encerrará com a criação da nova moeda?
Passado esse primeiro momento, que não deve superar três meses, haverá melhora sensível da economia: forte queda da inflação e retomada do nível de atividades.
Será possível sustentar a queda da inflação por tempo prolongado? Não é fácil responder com exatidão essa pergunta, mas tudo indica que a inflação deverá manter-se muito baixa por um período bastante razoável, pois as condições de manejo dos instrumentos de política econômica são todas favoráveis.
A situação fiscal é bem mais confortável que durante as experiências anteriores. A dívida interna tem prazo médio de vencimento mais alongado que às vésperas do Plano Collor 1. Esses fatores conferem certa liberdade ao exercício da política monetária, para inibir a remarcação de preços.
Mas não é apenas do lado da demanda que as condições são favoráveis. Elas também o são do lado da oferta, o que aumenta grandemente as chances de disciplinar os preços sem necessidade de recorrer ao controle direto. Hoje o poder disciplinador das importações não é mais vã ameaça. Não apenas porque já não mais existem controles administrativos sobre importações e a alíquota média foi reduzida de 40% para 14%, como também porque, ao longo dos últimos três anos, foi-se construindo uma rede de relações comerciais que permite a internação rápida de mercadorias.
Além disso, há reservas mais que suficientes para sustentar um aumento das importações. Acresce que, como é grande a liquidez no mercado financeiro internacional, há condições favoráveis à recomposição do nível de reservas, na eventualidade de um processo mais prolongado de aumento das importações. Para completar o panorama, há recessão nas principais economias do mundo, à exceção dos Estados Unidos. E as empresas dos países em recessão tendem a responder positivamente à abertura de novos mercados externos.
Assim, com a inflação em baixa, nada além de 4% ao mês, haverá retomada do nível de atividades, à medida que a economia se monetize e amplie-se o horizonte de crédito. Quais as chances de que a inflação se mantenha baixa no longo prazo e a retomada do nível de atividades se converta numa retomada sustentada do crescimento?
Para que a nova moeda não venha a ter vida efêmera, é necessário transmitir à sociedade segurança de que, em breve, o Tesouro Nacional poderá prescindir em definitivo das muletas do Banco Central. Para tanto é fundamental, no mínimo, desarmar as bombas de efeito retardado que ameaçam a solvência do Tesouro (passivos do FGTS e FCVS e, principalmente, o déficit potencial da Previdência, entre outros) e consertar o federalismo fiscal truncado que herdamos da Constituição de 1988, de modo a assegurar condições reais para a independência do Banco Central.
A revisão constitucional é o instrumento apropriado para operar essas mudanças. Por isso é fundamental que ela se realize até 31 de maio.
Mas é preciso reconhecer que a própria introdução da URV poderá congestionar a agenda do Congresso Nacional. Isso significa que estejamos condenados a ter mais uma moeda de faz-de-conta? Não, isso significa que o sucesso da estabilização passa a depender, mais do que nunca, da expectativa quanto ao resultado e, do resultado em si mesmo, das eleições de outubro próximo, já que as questões-chave para a estabilização definitiva podem ficar postergadas para o próximo mandato presidencial.
Haverá candidatura capaz de encarnar a estabilização, a expectativa de que as políticas públicas não irão destruir o crédito do Tesouro? Ou a disputa será travada entre candidatos de perfil populista, ainda que eventualmente opostos pelo vértice? Esta é a incerteza maior quanto às chances de sucesso definitivo da estabilização econômica e da retomada sustentada do desenvolvimento.

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