São Paulo, quarta-feira, 2 de março de 1994
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Dois filmes decifram fase mítica de Artaud

FERNANDA SCALZO
DE PARIS

O dramaturgo, escritor e poeta louco Antonin Artaud (1896- 1948) volta ao cenário cultural da França com o lançamento esta semana de dois filmes e o relançamento de dois livros. "La Véritable Histoire de Artaud le Mômo" (A Verdadeira História de Artaud o Menino), um documentário, e "En Compagnie d'Antonin Artaud" (Na Companhia de Antonin Artaud), uma ficção, são filmes complementares e tratam de um mesmo período: os dois anos que Artaud passou em Paris, depois de sair de um internamento de nove anos em diversas clínicas. Os personagens da ficção aparecem 45 anos mais velhos no documentário, relembrando as cenas que marcaram todos os que conviveram com Artaud nesses dois anos que precederam sua morte.
Com sua boina sempre enterrada na cabeça, Artaud saiu de sua internação cheio de manias. Entre elas a de tratar todos os seus amigos de senhor e senhora e de fazer questão de também ser tratado assim. Segundo os depoimentos de seus amigos no documentário, o tratamento informal soava a Artaud como um desrespeito na medida em que era o mesmo que ele recebia, junto com eletrochoques, nos hospícios por que passou.
"O senhor não imagina o quanto eu sofro, senhor Prevel. Eu só posso me exprimir pelo sarcasmo. De outra forma, só encontro o caos", disse Artaud ao seu discípulo, o jovem poeta Jacques Prevel. Para partilhar da intimidade, do gênio e da loucura de seu mestre, Prevel, que trocara com ele algumas cartas quando Artaud estava internado em Rodez, torna-se antes de mais nada seu fornecedor de drogas em Paris. "En Compagnie d'Antonin Artaud", a ficção de Gérard Mordillat é baseada no diário homônimo de Jacques Prével e retrata essa adoração.
Artaud vai retribuir a amizade de Prevel com comentários sobre seus poemas, às vezes duros e às vezes encorajadores. O dramaturgo, que tinha um certo horror às mulheres e ao sexo de um modo geral, condenava Prevel por ter uma amante (Jany de Ruy) e é por causa dela que os dois terão suas poucas discussões. "Sua mulher sofre demais, senhor Prevel. Esta jovem é nefasta", dizia Artaud.
Jacques Prevel (1915-1951) morre três anos depois de Artaud. Mas quase todos seus outros amigos, entre eles a viúva de Prevel e sua amante, aparecem no documentário de Gérard Mordillat e Jérôme Prieur. Marthe Robert relembra o horror que lhe causou a visita ao hospício de Rodez, onde Artaud ficou internado por três anos. Paule Thevenin testemunha o esforço do amigo Arthur Adamov, que conseguiu obras de Picasso, Matisse, Braque e pôs a leilão para arrecadar dinheiro e poder tirar Artaud de Rodez. Domnine Milliex, filha de Thevenin, relembra a casa de repouso em Ivry (em que Artaud morava em Paris), onde ia visitá-lo com a mãe.
Muitos dos depoimentos referem-se a cenas que aparecem no outro filme. Todos são muito pessoais, frutos de diversas memórias e, por isso mesmo, às vezes contraditórios. Fica patente o esforço de todos os amigos de Artaud em fazerem, em vão, reviver o poeta. "Eu já estou morto há muito tempo. Apenas sobrevivo", dizia lúcido Artaud.

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