São Paulo, quarta-feira, 2 de março de 1994
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O príncipe e a URV

ANTONIO DELFIM NETTO

Sem dúvida, um dos aspectos mais originais da nova tentativa de estabilização refere-se à criação de um indexador universal, a Unidade Real de Valor, que refletirá a "inflação contemporânea". O seu valor nominal será corrigido diariamente, com "base na melhor estimativa da inflação corrente".
Como se fará isso? A exposição de motivos nº 395, de 7 de dezembro de 1993 não poderia ser mais clara: "A URV terá seu valor em cruzeiros reais anunciado diariamente pelo Banco Central. Para tal, este utilizará sua melhor estimativa da inflação corrente, da mesma forma que o faz para balizar sua atuação no mercado de câmbio, de forma a manter estável o valor das divisas estrangeiras com relação a mercadorias no Brasil. Assim como essa política em relação à taxa de câmbio tem contribuído para o sucesso do comércio exterior ao longo dos últimos anos (sic), a disseminação da URV nos outros setores da economia através de uma regra de manutenção do seu valor real deverá, seguramente, reduzir o grau de incerteza dos preços relativos num ambiente ainda inflacionário e preparar o caminho para a estabilização definitiva dos preços" (pág. 27). Hoje sabemos que a URV (a inflação corrente) é apenas a projeção "pro-rata tempore" da média aritmética de três índices de preços.
O texto refere-se certamente à taxa de câmbio real, isto é, àquela que se supõe que comanda o fluxo de bens e serviços exportados e importados. A taxa de câmbio nominal estabelecida pela comparação dos retornos de dois ativos (dólar e cruzeiro real), quando é livre o movimento de capitais, produziria uma cavalar valorização do cruzeiro real frente ao dólar (ou a uma cesta de moedas), como se verifica facilmente pela acumulação de reservas dos últimos 20 meses.
Desta maneira pode-se afirmar, sem nenhum risco de contestação, que longe de ser fixada pela "melhor estimativa da inflação corrente", a taxa de câmbio nominal tem refletido apenas a vontade do príncipe.
Todos sabem –mas o Banco Central finge ignorar– que houve um substancial declínio da taxa de câmbio real, que se acentuou desde meados de 1992, exatamente quando se começou a acumular reservas graças às espantosas taxas de juros reais estabelecidas no país. Esse aumento de reservas tem como contrapartida o aumento equivalente da dívida interna.
Por outro lado, falar em sucesso da política cambial para o comércio exterior nos últimos anos é claramente um abuso de linguagem. Quantos últimos anos? Na última década, perdemos 0,6% da nossa participação nas exportações mundiais. Isso significa 24 bilhões de dólares, ou seja, 600 mil empregos! Mas quem se interessa por isso em Brasília, onde o emprego sempre aumenta!
Talvez "últimos anos" seja o quinquênio de 1989 (quando exportamos 34,4 bilhões de dólares) a 1993 (quando exportamos 38,8), com um aumento nominal de 3% ao ano! O problema é que, no mesmo período, os países em vias de desenvolvimento aumentaram suas exportações em 11,3%.
Se é isso que o príncipe considera "sucesso" das exportações, o seu critério de avaliação deixa muito a desejar. Esse "sucesso" produziu desemprego nas exportações e exportou empregos nas importações! Isso não impressiona ninguém na metrópole, pois são empregos da colônia...

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