São Paulo, quinta-feira, 3 de março de 1994
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'A Falecida' trai Nelson pela ditadura da piada

DAVID FRANÇA MENDES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Abrem-se as cortinas, está começando "A Falecida", de Nelson Rodrigues, em montagem dirigida por Gabriel Vilela: ao fundo, vê-se um muro de tacos com velas nas extremidades; em primeiro plano, uma mesa de sinuca. Sobre a mesa, Maria Padilha segura um guarda-chuva. Entra som de fita: ouve-se Elis Regina cantando "Cartomante", de Ivan Lins. É uma espécie de clip: quando Elis canta "cai o rei de ouros, cai o rei de espadas..." alguém, serelepe como um pierrô de antigos carnavais, atira um baralho para o ar.
É a primeira cena de uma das mais belas tragédias do teatro brasileiro, a consulta de Zulmira à cartomante, e Vilela fez parecer teatro infantil, transformando uma opção cenográfica duvidosa em fio condutor de uma ação dramática que seria eficiente mesmo sem cenário. Difícil imaginar algo mais inadequado a uma montagem de Nelson Rodrigues que desviar o interesse do ator para o cenário.
A busca do efeito se tornou um vício incurável no teatro brasileiro. Encena-se Nelson, O'Neil, Sófocles ou Pirandello não pelo que suas obras têm de essencial, pelo que revelam da experiência humana (e o teatro sempre foi uma forma privilegiada de experimentar o texto, de viver a arte mais do que apenas consumi-la), mas como grifes que justifiquem efeitos cenográficos, coreográficos, luminosos. A tragédia de Zulmira, a protagonista de "A Falecida", é poderosa no que ela tem de carnal, humana, concreta. O subúrbio, o futebol e a sinuca não são ambientes que Nelson teria escolhido como símbolos ou meros adereços, mas elementos de uma realidade onde a tragédia se desenrola.
Colocar esses elementos em primeiro plano, carnavalizar as situações, é trair Nelson em favor de um esteticismo de gosto duvidoso, de uma ditadura da piada.
Por que Pimentel (o amante) está vestido de lutador de boxe? O espectador entende melhor a cena se ele está caracterizado assim? A trama fica mais forte, a tragédia revela algum aspecto ainda inédito? Ou o que interessa é apenas uma piada? Bom, e onde está a graça? Pimentel luta boxe, Zulmira dança um tango, Toninho joga bola e quem vai à lona, quem dança, quem leva o gol é o texto.
Prejudicado em seu conteúdo pelo caráter decorativo da montagem, o texto perde também seu ritmo –o inconfundível sotaque rodrigueano, coloquial, próximo– porque Vilela prende o jogo, atrasa cenas para fazer os seus balés bobos, desvia a trama para acender um neon, espalha bolas e chuteiras pelo cenário mas perde o gol por excesso de firulas.

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