São Paulo, sexta-feira, 4 de março de 1994
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'Filadélfia' é um caça-níqueis militante

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não seria possível condenar um filme como "Filadélfia", de Jonathan Demme, que conta a história de um homossexual vítima da Aids e da discriminação.
Por mais que se fale contra a síndrome do "politicamente correto", contra seus ridículos e suas censuras, há pontos em que ser politicamente correto surge como uma espécie de dever moral. Apoiar a causa dos índios, condenar o racismo, ou, neste caso, preocupar-se com o problema da Aids, não é uma questão de modismo ou de bobeira caridosa, mas sim de direitos humanos.
Desse ponto de vista, é muito bom que "Filadélfia" exista. O filme conta a história de um jovem advogado de sucesso (Tom Hanks, provavelmente no melhor papel de sua carreira) que contrai a doença e é despedido do escritório. Busca nos tribunais, reparação contra a atitude discriminatória da empresa.
Assistimos ao desenvolvimento de sua doença e aos progressos de sua luta. Difícil não acompanhar o filme com interesse, com torcida, com comoção.
Dito isto, cabe passar aos problemas, a meu ver enormes, de "Filadelfia".
Jonathan Demme, o diretor, tinha feito em "O Silêncio dos Inocentes" um exercício admirável, tremendo, de tensão cinematográfica. A figura de Hannibal Lecter, o "Canibal", vivida por Anthony Hopkins, era puro terror, inteligência e escuridão.
As primeiras cenas de "Filadélfia" repetem o clima de tensão atingido por Jonathan Demme em sua obra anterior. Os primeiros sintomas da doença, a própria revelação de que o protagonista tem Aids, prometem um filme ao mesmo tempo excelente e insuportável. Um suspense realista, sem vilões, apavorante, se estabelece no roteiro.
Acontece que ninguém aguentaria se "Filadélfia" mantivesse o mesmo ritmo. A Aids não se presta a virtuosismos hitchcockianos.
Jonathan Demme tinha de resolver, então, o seguinte problema: fazer um filme que fosse realista e assustador, mas que não afastasse o público. Manter a tensão dramática da história, mas ao mesmo tempo explorar suas potencialidades emocionais, os sentimentos de compaixão e solidariedade que o tema comporta.
O que se vê é uma mistura regida pelo espírito comercial de Hollywood e pelas exigências corretas da opinião pública americana.
As cenas de terror e de suspense iniciais se deixam substituir, assim, por momentos de grande sentimentalismo, no gênero dos dramas familiares tipo "Num Lago Dourado" ou "Gente como a Gente". A visita de Tom Hanks à família, a compreensão, o amor que ele recebe dos pais e irmãos, se bem que bonitos e edificantes "comercializam" o filme para valer.
Mas, como não está em jogo apenas uma questão sentimental e como o filme não pretende ser piegas, intervém outro ingrediente, mais político. "Filadélfia" mostra a luta contra a discriminação dos portadores do vírus.
E, como aborda uma questão de justiça, de direitos humanos, "Filadelfia" se transforma em mais um daqueles filmes americanos de julgamento. Debate nos tribunais, advogados inteligentes, marteladas na mesa, testemunhas embaraçadas.
Somam-se, assim, três vertentes do puro cinema comercial hollywoodiano: o lado medo/suspense, o lado lágrimas/família, o lado razão/justiça/filmes de tribunal.
Seria exagero dizer que nenhum destes três componentes deu certo em "Filadélfia". O fator sentimental rende algumas cenas de grande intensidade, graças a excelentes atores, especialmente ao jogo, muito forte, entre os esforços de otimismo e alegria dos personagens e a percepção que todos têm da tragédia em curso.
O fator justiça/filme de tribunal convence menos. O processo que Tom Hanks move contra seus antigos patrões, pedindo indenização por ter sido despedido, vai meio aos trancos e barrancos. Está longe de aparecer como o brilhante exercício de argumentação lógica, de implacabilidade jurídica, de que é exemplo o "Questão de Honra" com Jack Nicholson, Tom Cruise e Demi Moore –este sim, um belo filme de tribunal.
O lado da tensão, do horror, da radicalidade aparece muito menos em "Filadélfia" do que em "O Silêncio dos Inocentes". Também pudera. Fazer um filme hiper-realista e apavorante sobre Aids talvez seja humanamente impossível. O que se mostra já é mais do que suficiente.
Não é que "Filadélfia" seja, portanto, um mau filme. Emociona, é claro, e muito. Mas não esconde o esforço de ser uma "solução", uma mistura cuidadosa de elementos diante de um problema trágico e delicado demais.
Caça-níqueis militante, apelativo e sério, "Filadélfia" procura uma eficácia ao mesmo tempo comercial e política. Ter conseguido isto, diante de assunto tão grave e doloroso, é um mérito. Mas, a rigor, os elogios devem parar por aí.

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