São Paulo, sexta-feira, 4 de março de 1994
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Uma decisão cultural

CLÓVIS ROSSI

SÃO PAULO – A derrota definitiva da inflação, digam o que disserem os técnicos, depende fundamentalmente do estado de ânimo da sociedade. Chega um instante em que a devastação provocada por uma inflação elevada causa danos não apenas do ponto de vista econômico, mas também (ou principalmente) sob o aspecto psicológico.
A questão é saber se a sociedade brasileira chegou ou não a esse ponto de esgotamento psíquico. Na Bolívia, por exemplo, chegou. Não me sai da memória a explicação de um garçom do hotel em que me hospedei, durante a cobertura da eleição presidencial de 1989. Um dos candidatos era Gonzalo Sánchez de Lozada, justamente o arquiteto do plano que derrotou a hiperinflação (21.000% em 1985), embora com enormes custos sociais.
O garçom ia votar justamente em Sánchez de Lozada e explicou por quê. Antes, vivia mal economicamente e inseguro psicologicamente, devido à infernal instabilidade provocada pela alta brutal de preços a cada instante. Depois, também vivia mal economicamente, mas sabia perfeitamente qual era o tamanho do seu mal.
A verdade é que a inflação provoca uma devastação também cultural. Eu mesmo senti na pele o que é cultura inflacionária. Um dia, em Washington, entrei em uma cafeteria, pedi um chocolate, bati os olhos na tabela de preços, distraído com a leitura do jornal, vi um número 5 e dei US$ 5 à caixa. Quando me preparava para sentar, ela me chamou de volta e deu o troco (US$ 4,50). Havia um 5 no preço, sim, mas era o de 50 centavos.
Para um nativo do Brasil, país em que nem 50 centavos nem 5 cruzeiros compram o que quer que seja, não há diferenças essenciais. Mas, em dólar, é muita coisa.
Mais: há toda uma geração de brasileiros que mal sabe o que é crediário (meus filhos só foram descobrir a possibilidade de comprar a prazo quando nos mudamos para Madri, em 1992, quando todos já tinham mais de 20 anos).
Tudo isso (e há muito mais) provoca um desgaste psicológico terrível, que, no limite, leva a aceitar qualquer coisa que se faça para abater a inflação. A questão que pode decidir a sorte do Plano FHC é saber se se chegou ou não a esse limite.

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