São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
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O patrimônio e o decreto

MARCOS CARRILHO

Quem perde são os cidadãos, porque a polêmica desloca a discussão do essencial
Uma recente iniciativa do prefeito de São Paulo vem causando muita discussão. Trata-se do decreto que determina a revisão dos tombamentos realizados pelo município.
Até aqui, a polêmica mostrou posições mais pautadas pelo impulso apaixonado do que pela evidência dos fatos.
Basta proceder a uma leitura atenta do decreto para verificar que aquilo que foi estabelecido não passa de procedimento administrativo corriqueiro, que dispensaria perfeitamente o instrumento utilizado, ou seja, o decreto.
Bastaria que o prefeito ordenasse administrativamente o reexame dos processos de tombamento para verificação de eventual vício ou lacuna que ferisse os ditames da lei. Trata-se, aliás, de uma obrigação do poder público zelar pelo correto cumprimento das normas legais.
Mas a que se presta então tal medida, se aparenta ser a um tempo inócua e exagerada? Sem dúvida tem sua utilidade e sob um duplo aspecto: para o público externo e para o público interno.
Para efeitos externos, Maluf dá uma satisfação aquele seu eleitorado conservador e, digamos, um tanto arrogante, visceralmente contrário aos tombamentos. Internamente, a medida, com certeza, se dirige aqueles setores que de tão identificados com a causa preservacionista não hesitam no propósito de tudo preservar.
Se tais conjecturas podem constituir uma justificativa, isso não explica os prejuízos decorrentes da medida. E quem perde?
Quem perde é a cidade, são os cidadãos. Perdem porque a polêmica e o fato gerador deslocam a discussão para as posições exarcebadas do tudo ou nada, deixando de lado o que é essencial: as condições e o destino do nosso patrimônio. Tais atitudes afastam de imediato qualquer possibilidade de reflexão sobre as alternativas e as hipóteses do exercício de negociações que aproximem os setores favoráveis aos que se opõem.
Posturas que não admitem qualquer limitação à propriedade ou que, por oposição tendem a sacralizar o patrimônio, jamais vão ser capazes de reconhecer que um bem cultural é um produto que alia duas espécies de valor, ambos importantes: o valor cultural e o valor econômico. A única possibilidade de sua permanência, de sua existência perene, reside justamente na sua disponibilidade. A preservação do bem cultural só tem sentido na medida em que este possa ser fruído pela coletividade. E só é admissível que isso se faça às expensas do proprietário particular se for passível de apropriação econômica.
O futuro do patrimônio está, portanto, na negociação, na possibilidade de serem encontradas formas que permitam preservá-lo e, ao mesmo tempo, possam dar-lhe destino econômico. Senão o mais rentável, pelo menos aquele que estimula o seu detentor, evitando o abandono puro e simples para que o tempo se encarregue de fazê-lo desaparecer.
Estabelecido o referencial mais amplo da discussão, cabe retornar ao ponto de partida, para advertir que se o decreto é redundante, dele podem surgir iniciativas açodadas ou exorbitantes, como, por exemplo, a hipótese de eventuais destombamentos. Nesse caso, teria sido gerado o precedente e o fato ao qual estaria atento, não apenas o IAB, mas as entidades preservacionistas e, notadamente, o Ministério Público, uma vez que, se é exigível a observância dos procedimentos legais para tombar, é necessário tanto maior rigor no exercício da atitude contrária.

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