São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
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Iberê sintetiza história da figura

RONALDO BRITO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sem exagero, acredito, a obra de Iberê Camargo encarna hoje a pintura moderna no Brasil. A imagem, corriqueira, adquire no caso valor expressivo de verdade: as suas telas parecem efetivamente encarnar a pintura. Numa acepção muito específica, inclusive, ao reenfatizar dramaticamente a origem corpórea da concepção de Forma
ocidental. Um embate contemporâneo, incerto e saturado, com a gênese e a história da forma na tradição pictórica do Ocidente seria talvez o mais próximo que se poderia
chegar de uma caracterização concisa dessa pintura profunda, mas de impacto imediato, com acentos trágicos porém avessa à grandiloquência, tão ardentemente individualista quanto generosamente pública.
A própria noção bíblica de criação e de obra vê-se questionada pela raiz nesse esforço para sustentar a visibilidade do real no momento mesmo em que este ameaça
vacilar e diluir-se em aparências anódinas, simulacros inócuos ou no mero exibicionismo do catastrófico. Um quadro recente de Iberê Camargo resume uma autêntica arqueologia da forma –a sucessão e a supressão concomitantes dos gestos repassam todas as fases instituídas da Figura no ocidente para descobrir novas criaturas de pintura que anunciam justamente formas últimas, calcinadas, mas, afinal e sobretudo, Formas. Assim, nada menos do que nossos conceitos genéricos do Digno e do Íntegro sofrem uma inversão drástica, pois só às custas de uma empresa terrível de liquidação e agregação se torna possível agora "depurar" a essência do fato plástico. Tais figuras, íntegras e dignas em sua sabedoria ou idiotia trágicas, resultam obviamente de todas as desfigurações imagináveis. No limiar da modernidade, Goya antecipou os horrores à espera da imaginação livre moderna no ato mesmo de exorcizar os persistentes fantasmas feudais. Iberê Camargo, no curso da modernidade
tardia, constata a impotência da imaginação criativa perante a enormidade opaca da realidade contemporânea -só lhe resta escavar e escavar a essência histórica da pintura até ressuscitar a sua atualidade. Diante de sua flagrante inutilidade social, a pintura se revolta e empenha-se desmesuradamente na afirmação de seu valor autônomo como coisa qualificada, pensamento abstrato, absurdo expressivo que seja. Semelhante paroxismo de trabalho acaba por produzir presenças inúteis que, graças à sua inteligência e a intensidade emocional, acusam por contraste a futilidade da maior parte das presenças vigentes, simplesmente descartáveis porque ausentes quanto a si
mesmas.
Uma vez mais, compulsivamente, uma lírica moderna exerce ao extremo o seu autoconhecimento para reativar uma pulsão estética primitiva, anterior a regras, modelos e ideologias. Talvez resida aí o motivo básico da vinculação da poética de Iberê Camargo ao expressionismo. A razão estética emancipada foi e continua a ser
obrigada a formular ela própria o antídoto à sua incontrolável voracidade intelectual. Todo o saber acumulado sobre a pintura volta-se contra si mesmo a partir do momento em que o desejo de pintar exige a pintura. E já a frase canhestra, redundante, exprime a impossibilidade de uma solução pacífica, ou mesmo dialética, para o conflito.
Fatalmente, portanto, a sorte da pintura de Iberê Camargo decide-se inteira na agonia do Ato de Expressão. Difícil, contudo, lograr uma compreensão íntima do Ato de Expressão. Para efeitos deste artigo despretensioso, digamos minimamente que ele é tudo menos a visada de um sujeito sobre um objeto. De fato, cancela tanto a subjetividade do sujeito quanto a objetividade do objeto para reinstaurar o fenômeno original do homem no mundo. Carretéis, abstrações informais ou ciclistas, Iberê Camargo sempre foi o apaixonado pintor do enigma da familiaridade do homem com a terra. Aí radica o nosso poder de figuração, o que entre outras coisas explica "en passant" porque as telas de um mestre moderno chegam com frequência a evocar inscrições rupestres. De toda maneira, sobre o linho ou sobre a pedra, trata-se da mesma linguagem: signos plásticos e sua ânsia de figurar. E foi preciso uma revolução, a revolução da arte abstrata, para que a cultura ocidental se dispusesse a reconhecer a autonomia do "logos" plástico.
O gênio é sempre oportuno, discordar parece-me de um pessimismo atroz. Que tenhamos gerado uma pintura capaz de enfrentar com semelhante desenvoltura e
gravidade os impasses e as desilusões da modernidade, eis o que pelo menos nos dispensa -a nós, híbridos da cultura ocidental, por isto mesmo condenados a repensá-la continuamente- de levarmos a sério todo gênero de contrafações ditas pós-modernas. O que, por favor, não declara intenção de erguer a obra de Iberê Camargo à categoria de modelo para nossa arte contemporânea. Repetiríamos nossos
arcaicos, mas sempre renovados, costumes coloniais para traí-la inapelavelmente. Se de alguma coisa, a poética intransigente de Iberê Camargo seria um modelo do axioma básico da liberdade moderna: que cada um seja, na máxima potência, aquilo que é.

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