São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
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HIROXIMA

IBERÊ CAMARGO

HIROXIMA
Conta-se que certo dia, numa nublada manhã de outubro , o céu de Hiroxima se tornou de imprevisto mais luminoso e ardente que o Sol.Uma onda de luz e de calor inusitado a envolveu e a transformou em ruína.No epicentro da explosão nenhum ente vivo, apenas escombros. Aqueles que sobreviveram à luz que veio do céu
tiveram os padrões das vestes impressos na carne e suas sombras estampadas nas paredes das casas destruídas. Outros que se encontravam afastados, nos subúrbios, distantes do núcleo da explosão, agonizavam no percurso do tempo.Entre eles, o homem-pintor. Oito anos são passados . A princípio, apenas uma coriza renitente, sintoma de degeneração que se processava, oculta, inexorável, irreversível. Com o passar dos meses, a saliva se torna espessa, viscosa, quase uma baba.
Sono intranquilo, acessos de tosse, respiração opressa, boca ressequida. Vária vezes, à noite, se ergue do leito para molhar a boca. Passa horas e horas insone a escutar o silêncio. No extremo da angustia, acende a luz com frequência, para espantar a noite e o medo. O escuro aumenta a solidão e torna o espaço infinito. Para não senti-la, evoca a companhia das lembranças e as procura reviver. Demora nas que lhe são caras. Imagina a boa Bua, sua velha ama, a acalentá-lo.É preciso voar, mesmo não tendo asas, pensa de si para si, para se encorajar . Lembra o hipopótamo que refocilava na água lodosa do charco, à procura do frescor da umidade necessária a vida . Identifica-se com o paquiderme e com tudo que vive na água. Recorda, também,
o homem que o aterrizou na infância. Ele não tinha nariz, apenas dois buracos sanguinolentos , duas chagas sobre a face, por onde respirava.
--"Não sei o que tens", lhe diz o guia . E prossegue: Haverá alguém, em algum lugar do mundo, que saiba o mal que te aflinge". "Podemos procurá-lo". Posso te acompanhar na viagem. Ele talvez viva na India, na China, na floresta amazônica, depois das grandes planícies, além das montanhas, ou ainda num de seus cumes mais altos, lá onde pairam as nuvens, lá onde mora o vento. Talvez habite uma caverna. Deve ser um homem primitivo, que ainda conserva intata a sabedoria da natureza, esse conhecimento ainda não corrompido pela presunçosa ciência.Esse conhecimento que está no animal, na planta e em tudo que vive.Esse homem, por certo, conhece o unguento que cura a queimadura do raio, do fogo primitivo.
Partiram. Eram dois andarilhos com seus farnéis e seus cajados, iguais aos personagens das histórias para crianças. Eram dois caminhantes palmilhando estradas poeirentas , escalando escarpas, atravessando desertos, transpondo rios. Assim, andando , um dia penetraram num túnel que que parecia não ter mais fim. Foi quando, depois demuitas jornadas, depois de muito andar, as mãos do homem-pintor tocaram numa parede de terra úmida que deteve seus passos. Sentiu que de súbito o túnel se espreitava ameaçando sufocá-lo. Palpou o chão e deitando-se de bruços, rastejou como um réptil, procurando retroceder caminho, fugir.Sentiu-se sufocar. Amedrontado, chamou pelo guia, o homem que oito anos passados jogara a bomba, e sua voz se perdeu sem eco e sem resposta.Ele estava só. A escuridão foi se tornando cada vez mais densa, mais profunda, como uma noite sem lua.
Os ruídos do teto de madeira lá na estação do Jaguari -os estalos das bordas do assoalho - rumores familiares que não se identificam - que ora lembram passos, ora correntes que as almas do outro mundo arrastam para assustar, foram sumindo, foram se distanciando; agora já quase inaudíveis e, por fim, todos os murmúrios se calam .
Após os gestos desesperados , as convulsões , os espasmos, os estertores, realidade e pesadelo se misturam: uma suave sensação de paz, de conciliação, de reintegração e de dissolução -como a do sal na água- o invade. O homem-pintor não sente mais o corpo, que por fim se aquieta. A noite desce, uma noite diferente, espessa, impenetrável, mas leve como uma mortalha. Dorme, dorme, foi a última palavra que ele ouviu.

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