São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
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A MÃE DE TODAS AS LÍNGUAS

MARCELO MUSA CAVALLARI
DA REDAÇÃO

Os homens podem estar conversando há 100 mil anos. Depois de fazer um estudo comparativo de cerca de 200 famílias de línguas –o mais amplo universo usado nesse tipo de pesquisa até agora– Johanna Nichols chegou à conclusão de que a "mãe de todas as línguas" existia em alguma parte da África Central há pelo menos 100 mil anos.
Nichols é professora do Departamento de Línguas Eslavas da Universidade da Califórnia em Berkeley e apresentou suas conclusões na reunião anual da Sociedade Norte-Americana para o Avanço da Ciência, na semana passada, em San Francisco.
A data proposta pela professora é a mais recuada jamais proposta para a existência de uma língua. Johanna supõe, com base no grau de parentesco que as várias famílias de línguas apresentam, que elas tiveram uma origem comum. Geograficamente, a origem tem que ser na África, de onde se supõe que a espécie humana se espalhou para o resto do mundo.
A data, evidentemente, tem que ser anterior a essa diáspora. Nichols usou a análise estatística do grau de variedade e semelhança entre as línguas de vários grupos linguísticos. Isso feito, foi possível conjecturar acerca de um padrão de variabilidade das línguas ao longo do tempo. A data de 100 mil anos é resultado de um recuo hipotético até uma época em que o grau de variação fosse igual a zero, ou seja, uma época em que houvesse uma só língua.
Nichols comparou estruturas gramaticais e semânticas de línguas nativas da América, da Nova Guiné e da Ásia. O objetivo era pôr em contraste línguas não conectadas entre si. "As linguagens aparentadas mostram semelhanças nas estruturas profundas que não aparecem nas não-aparentadas", disse. Uma das estruturas profundas a que ela se refere é o uso de designativos da primeira pessoa (meu, para mim, eu etc.).
As famílias linguísticas podem ser determinadas a partir de semelhanças estruturais. Por exemplo, quando se começou o estudo das línguas indo-européias, no final do século 18 e começo do 19, o indício de que elas deveriam ter tido uma origem comum era a grande semelhança estrutural entre o latim, o grego e o alemão. As línguas indo-européias –grupo que compreende quase todas as línguas da Europa mais as iranianas e a maioria das línguas da Índia– têm como uma de suas carcterísticas básicas a independência entre o sistema verbal e o nominal. Os verbos se alteram segundo regras próprias e os substantivos e adjetivos –o sistema nominal– segundo outras. Não é o que ocorre com as línguas semitas, por exemplo. Em árabe ou hebraico, as frases "ele fala" e "ela fala" terão verbos diferentes ao se referirem a um sujeito masculino ou feminino. Essas regularidades –mais as regularidades semânticas– permitem o estabelecimento de famílias de línguas com um grau bastante grande de parentesco.
Quando se busca semelhanças que apontem origem comuns em grupos de famílias, geralmente o que se usa são estruturas semânticas. Raízes de palavras semelhantes significando a mesma coisa ou coisas correlatas são indício forte de parentesco.
Há, por exemplo, uma raiz –composta de m-l-k, ou variantes próximas- que significa algo relacionado a amamentação ou alimentação em um grupo muito amplo de línguas. A palavra "mlj" em árabe –uma língua semita– significa "mamar"; "milk" em inglês, língua indo-européia, significa "leite"; em saami, uma língua urálica, aparentada com o húngaro, "mielga" significa" seio; em tamil, língua dravidiana da Índia e do Sri Lanka, "melku" significa "mastigar"; em yupik, uma língua falada pelos esquimós, "meluq" significa "chupar"; em takelma, língua de um dos grupos indígenas da América do Norte, "mulk" significa "engolir".
Essa regularidade –cuja possibilidade de ter ocorrido por acaso é menor do que uma para um bilhão, segundo Meritt Ruhlen, autor de "A Guide to the World's Languages"– indica uma palavra que deve ter se formado antes que um grupo humano se dispersasse.
Nichols levou seu estudo mais à frente e tentou uma hipótese para a rota da dispersão da "língua mãe". Ela teria saído da África para o sudeste da Ásia e daí para o resto do mundo, num processo que teria tido início há 50 mil anos. Quando a dispersão começou, calcula Nichols, já não se tratava de uma, mas de várias línguas.
"É extraordinário como o uso de métodos linguísticos confirmados e confiáveis permite dizer quase tudo sobre as línguas antigas, de 50 mil anos", exulta Nichols.
Com agências internacionais

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