São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
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Bases para um novo Estado

CIRO GOMES

Historicamente o Brasil industrializou-se na esteira de um dirigismo estatal que, a seu tempo, revelou grande eficácia: fomos uma das economias 'capitalistas' que mais se desenvolveu em altas taxas ao longo de muito tempo (décadas de 50, 60 e 70).
A estratégia era substituir importações por uma indústria nacional formada a partir do superprotecionismo, do capital público obtido no superendividamento externo e posteriormente, interno. Se o Brasil é hoje a economia que é, devemos isso à materialização de um projeto nacional que –discorde-se dele ou não– foi danado para o fim a que se propunha.
Hoje somos um país insuportavelmente heterogêneo e contraditório.
Todos somos capazes de exemplificar as contradições que este projeto nacional produziu, deliberada ou descuidadamente. Descontada uma fração mínima, embora poderosíssima, de beneficiários das perversões atuais, os brasileiros querem mudar.
É razoável o consenso sobre o que não mais queremos. Não queremos mais a violência que põe em colapso a vida nas grandes cidades, não queremos mais nos comover com as hordas de meninos e meninas de rua.
Não queremos mais buscar serviços públicos de saúde e não os encontrar. Ver os meses sobrarem ao fim de nossos salários e mendigarmos sem conseguir um lugar para trabalhar. Não queremos mais pagar aluguéis a vida inteira, ter de decidir entre uma escola pública porcaria e uma escola privada que não podemos pagar.
Não queremos mais ser enganados por promessas mirabolantes às vésperas de eleições. Não queremos mais nos decepcionar com vitórias morais, das diretas, do impeachment ou da seleção...
Muito bem, já sabemos o que não queremos. Mas o que queremos? Para onde vai o Brasil? Quem e onde se mediará o natural conflito pertinente à construção de um novo modelo de desenvolvimento, um pacto político?
Sim, porque o que está acontecendo é que o velho modelo de Estado dirigista, voraz tomador de créditos, deficitário sem cuidado, financiador de uma "modernização industrial" na marra funcionou e morreu. Morreu sem velório decente no início da década de 80, de infecção generalizada.
Perdemos o crédito externo pelo aumento exorbitante dos juros internacionais –as famosas perdas internacionais– e com ele o modo não-inflacionário de financiar nosso déficit público cavalar. Abusamos do endividamento interno até a conta de lançarmos títulos públicos que pagam os maiores juros da história e ainda vencem todos depois de amanhã, sem que se tenha como pagá-los.
Descuidamos da revolução tecnológica que sofistica e barateia produtos em escala global. Deixamos o patrimônio público ser apropriado por corporações vorazes, seus fundos de pensão mirabolantes e sua retórica de "trabalhadores".
Criamos uma casta de plutocratas pendurados no Estado pelas tetas da sonegação de impostos, do crédito subsidiado que nunca se paga, dos subsídios intoleráveis para quem já é rico e do superfaturamento escandaloso de empreitadas públicas. Não podemos esquecer que para assistir ao paciente moribundo uma junta de oligarcas receitava panos mornos para o assalto ao Orçamento, enquanto empregavam doidamente parentes e afilhados para ajudar a cuidar do doente.
Este ano é absolutamente fundamental para que se construa em bases legítimas uma equação positiva que leve ao poder não uma pessoa ou uma agremiação partidária, mas uma força capaz de dar consequência prática a um novo projeto nacional que deve ser explicitado no processo eleitoral, sem o que se repetirá a perversa história de euforias despolitizadas, sequenciadas de decepções profundas e da desconstituição da legitimidade dos mandados obtidos pela simplificação grosseira de nossos graves problemas.
Esta é a tarefa a que deve se entregar o PSDB e suas principais lideranças. Defender um modelo de desenvolvimento liderado por um Estado saneado e dotado de uma expressiva taxa de poupança, avesso ao corporativismo burocrático, mas corajosamente distante da simplificação neoliberal.
Um Estado capaz de hierarquizar suas tarefas no plano das políticas públicas, em especial a de educação, e conduzir um projeto de expansão das atividades econômicas obediente a uma inadiável política industrial e de comércio público.
Um Estado, enfim, motivado por uma idéia-força de que interesse público não é a mera soma de interesses individuais, ainda que legítimos.
Estabilizar a economia e fundar uma moeda sólida é o começo indispensável. Devemos avançar.

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