São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
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Estabilização e sucessão

EDUARDO MATARAZZO SUPLICY

Poucos dias após ter tomado posse como ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso fez uma visita ao Senado, onde reuniu-se com cerca de 20 senadores, incluindo líderes de todos os partidos. Ali, falou que não havia solicitado sair do Itamaraty, mas que via como importante aceitar o convite formulado pelo presidente Itamar Franco. Ponderou sobre as dificuldades que iria encontrar, mas que tinha motivos para ser otimista.
Como companheiro de lutas comuns nas últimas décadas, expressei ao ministro a minha opinião: se desejasse ter sucesso na consecussão de objetivos na política econômica para o país, como conter a inflação, retomar o crescimento, melhorar a distribuição da renda e erradicar a miséria, seria recomendável transmitir ao presidente Itamar Franco e à sociedade brasileira sua disposição de permanecer até o final do governo como ministro da Fazenda. É claro que ele tem todo o direito de ser candidato a presidente e que também é legítimo que o PSDB possa lançá-lo se assim o desejar.
Na minha avaliação, para o alcance daqueles objetivos maiores seria necessário um horizonte mais amplo do que simplesmente até abril próximo. Naquela oportunidade lhe transmiti que, alcançando tais objetivos, qualquer que fosse o presidente eleito, muito provavelmente o convidaria a permanecer no cargo, mesmo que imprimindo novas prioridades ao governo.
Pode parecer que, como senador do PT, esta recomendação visaria unicamente barrar a possibilidade de surgir um forte competidor de Lula, ainda mais num momento em que os segmentos mais conservadores procuram ansiosamente uma alternativa. Na verdade, a recomendação transcende esta preocupação e suas razões podem ser explicitadas.
Primeiro, desde de que se tornou ministro, sua meta principal de combater a inflação foi acompanhada de barreiras que a fizeram saltar da casa dos 25% para 40% ao mês. O mais importante é que o ministro está apenas em meio à implementação de um programa de estabilização anunciado em 7 de dezembro último, constituído de três fases: a instituição do Fundo Social de Emergência, promulgado esta semana, a introdução da Unidade Real de Valor, iniciada em 1º de março, e sua substituição pelo real, dentro de alguns meses.
No diálogo que manteve com os senadores no último dia 3, o ministro Fernando Henrique Cardoso revelou ser sua expectativa que todos os agentes econômicos, gradativa e voluntariamente, passariam a utilizar a URV. Entretanto, na medida provisória 434, o governo considerou necessário disciplinar os salários, tornando obrigatória sua conversão pela média dos últimos quatro meses. Como resultado da fórmula, os salários ficaram com valores mais baixos do que ocorreria caso continuasse em vigor a última lei salarial.
O programa de estabilização congela uma situação de distribuição da renda das mais desiguais do mundo e não contém qualquer medida de importância para atacar a fome e a miséria. Se é mérito do governo Itamar Franco ter aceito a proposta de Lula de criar o Conselho de Segurança Alimentar, e de Betinho e d. Mauro Morelli de sensibilizar a sociedade para matar a fome de 32 milhões de brasileiros, as políticas governamentais, todavia, não demonstram a mesma preocupação.
A URV, é verdade, significará a indexação diária dos salários, neutralizando as perdas decorrentes da inflação, fato reconhecido como positivo pelo deputado Paulo Paim (PT-RS) e qualificado como "sonho de uma noite de verão" pelo economista Joelmir Beting. O sonho, além de partir de uma base relativamente baixa, só vigorará durante o período de transição, ou seja, até que a URV se transforme no real em, talvez, 30 ou 60 dias.
O ministro Fernando Henrique diz que a inflação em real será zero, não precisando mais haver correção. Mas quem garante, efetivamente, que a inflação será zero? É necessário que o Congresso tome medidas preventivas para assegurar a continuidade da reposição das perdas salariais, caso ocorram. Do ponto de vista dos trabalhadores, enquanto não houver a garantia da estabilidade dos preços, não convém transformar a URV em real.
Sendo o ministro parlamentar, é estranha sua declaração de que sairá para ser candidato se o Congresso alterar o plano. É minha responsabilidade examinar a proposição e tentar modificá-la à luz dos interesses maiores do país. É natural que surjam algumas mudanças, para, por exemplo, conter os abusos de preços por parte dos setores oligopolistas.
O valor do dólar varia em função do que ocorre na política econômica dos EUA e de suas relações com o resto do mundo. O valor da moeda brasileira deve variar em função do que ocorre em nossa economia e de nossas relações com o exterior. Não há razão de termos sempre a relação "um real igual a um dólar".
Fernando Henrique está diante de uma das mais cruciais decisões de sua vida. Anuncia Tasso Jereissati, presidente do PSDB, que dia 30 vai arrancá-lo do Ministério para ser o candidato à Presidência da República. Até lá a inflação não terá caído o suficiente e pouco se terá realizado para garantir a retomada do crescimento. Sabe o ministro que o seu plano apenas começa a ganhar consistência, enfrentando barreiras administrativas e políticas que demandam capacidade de coordenação incompatível com as atividades de um candidado em campanha. Sua saída poderá redundar na irrecuperável perda de oportunidade de o governo ter sucesso na área econômica.

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