São Paulo, domingo, 06 de março de 1994
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Cenas de um casal profissional

SÉRGIO DÁVILA

O clima entre os atores Celso Frateschi e Edith Siqueira começou nas cenas de beijo da peça "Tamara", um ano atrás. Agora na tragédia "Aulis", eles saboreiam talento reconhecido. Fora do palco, nos papéis de Cé e Didi, o par faz outra estréia esta semana: o ex-maoísta de carteirinha se muda de vez para a casa da ex-bicho-grilo.
A diferença entre a tragédia e o dramalhão pode estar na lágrima a mais. Na voz elevada na hora errada. No exagero ao se arquejar a sobrancelha. A peça "Aulis", em cartaz no porão do Centro Cultural São Paulo desde outubro de 1993, é uma tragédia sem excessos. E é um sucesso, medido em público, crítica e longevidade. Suas quatro sessões semanais, cem pessoas cada, lotam desde a estréia: críticos e articulistas foram unânimes (mas não burros) nos elogios: e não há perspectiva de a peça sair de cartaz, num tempo em que a concorrência é grande e os espaços, disputados. Os responsáveis são Celso Frateschi e Edith Siqueira. Agamenon e Clitemnestra no palco e Cé e Didi fora dele, casal em ambos os casos.
Esqueça que Celso e Edith foram escritos nessa ordem e os imagine lado a lado – não há um que venha antes do outro. Eles protagonizam "Aulis", uma adaptação do próprio Celso ao texto "Ifigênia em Áulis", concebida em 405 a.C. pelo grego Eurípedes. A peça, com divulgação pobre e publicidade nenhuma, ganhou a cidade. Os dois, com participações eventuais na televisão e longe do padrão global médio de beleza e atuação, começam a ganhar o devido reconhecimento como atores. Aquele atribuído ao mérito e não à armação.
Na peça "Aulis", Celso Frateschi e Edith Siqueira interpretam o dilema do generalíssimo Agamenon, marido de Clitemnestra e irmão de Menelau. Ele deve entregar a filha Ifigênia em sacrifício à deusa Ártemis para aplacar a fúria do mar. Mil návios esperam a decisão para ir a Tróia combater Páris, que raptou Helena, prometida a Menelau. É um embate entre a multidão e o particular, e grandiloquência dos gestos públicos e a mesquinhez dos atos pessoais. Tragédia curta, mas com todos os imperativos, proparoxítonas e perdigotos no lugar.
Longe do palco, é frequente encontrar o casal na cozinha do apartamento dela, na Vila Madalena – eles moram separados. Celso, 42, costuma preparar penne tricolor com alcachofra, sua especialidade, e Edith, 37, adora palpitar sobre a quantidade de sal. A mesma unidade que têm no teatro repetem fora: um sempre "devolve" a cena ao outro, a harmonia tenta ser constante e discutida. "Mas de maneira light", diz Celso.
A origem dos dois corre paralela. Celso era comunista daqueles de fazer autocrítica no banho. Maoísta "como quem escolhe entre ser corintiano e palmeirense", militava no segundo grau até entrar para o Teatro Arena, em 1969, quando teve contato com o mestre Augusto Boal. Depois, mudou-se para o subúrbio de São Miguel Paulista para fazer "peças para o povo". Já Edith era dos "desbundados", cursava fotografia e teatro no colégio Equipe. Ficou grávida aos 17 anos, teve seu filho, Tiago, e se casou aos 18. Separou-se aos 20 e aos 23 estreou sua primeira peça profissional, "Tietê Tietê".
O casal se encontrou várias vezes profissionalmente, mas nada aconteceu. Celso seguia com suas aulas na Escola de Arte Dramática da USP. Chegou a ser secretário municipal de Educação, Cultura e Esporte de Santo André, entre 1990 e 1992. Seu maior mérito, que lhe vale até hoje consultorias para prefeituras, foi ter colocado a cidade culturalmente no mapa. Em sua gestão, Kazuo Ono, mestre do teatro butô, fez espetáculo lá.
Edith levava a vida fazendo comerciais, dava aulas de teatro no Carandiru ou no Manicômio Judiciário. E participava de peças como a ótima "O Gosto da Própria Carne" (1985). Até que surgiu o convite para interpretarem o casal da peça "Tamara", em janeiro de 1992. Aceitaram, separadamente – eles nem se falavam direito. Um dos casamentos de Celso havia acabado, um dos de Edith acabaria em abril daquele ano.
Os ensaios começaram. "Eu olhava para aquele sujeito careca, descuidado, barrigudo, e pensava 'Vou dar um jeito nele'", lembra Edith. "O Roberto Lage, que era o diretor, me implorava para não fazer isso, que descaracterizaria o personagem", ri. Celso fazia o autoritário Gabrielle D'Annunzio, que tentava ter como amante Tamara de Lempicka (Edith). Gabrielle era careca, Tamara usava cabelo de melindrosa. "Eu nem ligava para ele", lembra Edith. "Mas eu ligava para ela", rebate Celso. "No camarim, pedia para ela ajudar a raspar minha cabeça", vai contando. "Depois ajudava a fazer o pega-rapaz do seu penteado". Nas cenas de beijo, Edith começou a sentir uma mudança.
Crise. Celso não concebia estar apaixonado pela "desbundada", vítima da alienação. Edith não conseguia entender o interesse pelo "comunista chato, que só falava coisas sérias e profundas" e ainda por cima com fama de bravo. Na verdade, nessa época, os dois já suspeitavam que os tempos não eram mais de classificações.
O que não sabiam é que iriam morar juntos meses depois, no apartamento de Edith, fato que deve acontecer exatamente nesta segunda-feira, 7 de março.
Atualmente, Celso diz ter-se "depurado" da ideologia, ficado mais leve, fruto de consultas à obra do dramaturgo alemão Bertold Brecht. Edith já busca uma "sinceridade na atuação" mais consequente. E a braveza? "No horóscopo chinês, eu sou macaco e o Celso é dragão", conta Edith. "Todos os outros bichos têm medo do dragão, menos o macaco, que sabe que ele é de mentira". Edith pensa em voltar às atividades comunitárias, com um curso de teatro para crianças de rua, e Celso se prepara para a minissérie "Memorial de Maria Moura", que deve estrear em maio na Globo. Os dois buscam um galpão para alugar.
Nesse galpão, junto com a companhia Parlapatões, Patifes e Paspalhões, montariam um espaço cultural. "Estrearíamos seis peças", empolga-se Edith. Entre elas "Aulis" e "Sardanapalo" (esta dos Parlapatões, também em cartaz), mais "Van Gogh", do amigo Elias Andreatto, e "As Coisas Ruins da Nossa Cabeça", inédito do jovem dramaturgo Fernando Bonassi. "Um gênio", segundo Celso. E, pièce-de-résistance, "As Guerreiras do Amor", adaptação de Domingos de Oliveira para "Lisístrata", de Aristófanes. "Basta alguém investir US$ 200 mil, nada frente ao projeto", acredita Edith.
É a Brecht que Celso recorre para explicar o momento vivido agora pelo par, em casa e no palco. O dramaturgo alemão tinha em "O Acordo" uma história exemplar para se livrar dos excessos: "Um pensador se viu um dia numa grande tempestade. Estava sentado num veículo imenso e ocupava muito espaço. A primeira coisa que fez foi sair do veículo. A segunda, tirar o casacão que usava. E a terceira, deitar-se no chão. Assim, ele venceu a tempestade reduzido à sua menor grandeza". Confere: há quem veja em "Aulis" o básico essencial; e eles vêem na vida a dois a menor unidade.

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