São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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depois da crise, a REPÚBLICA

HELOISA HELVECIA

A casa lembra república estudantil, mas abriga cinco homens e mulheres que viveram crises psicóticas. É mais que um lugar: dá autonomia a um grupo marcado por seu passado de "loucura". Um dos pais da idéia é o psiquiatra e psicanalista Nelson Carrozzo, 41, há 15 anos na luta antiinternação. Ele admite que, ao fugir do esquema tradicional, repetiu erros: tentou proibir o namoro entre moradores. "Eles aprendem na república. A gente também".
- O que é a República?
- Inventamos essa casa para quem já passou por crises psicóticas. Em geral, pessoas que moram com a família, passaram muito tempo se tratando e chegaram a um ponto em que a autonomia já está indicada, mas ainda não conseguem morar sozinhas.
- De onde veio a idéia?
- Da república de estudantes. Lá você mora sem a família, está independente, mas não sozinho. Divide a casa com outros na mesma situação, num ambiente que te ajuda a encarar a autonomia. Nossos pacientes precisavam dar esse passo, mas não tinham aonde ir. E não queríamos fazer uma pensão abrigada, algo ainda dentro da psiquiatria.
- Como se dá o apoio terapêutico?
- Na instituição A Casa, que começou como um hospital-dia há 15 anos, trabalhamos com uma equipe de acompanhantes terapêuticos. Achamos que esse personagem poderia atuar dentro da república, como um morador mais experiente.
- Quem faz as regras da casa?
- Quando criamos a república, inventamos junto as regras. Nós, os idealizadores – diretor, coordenadora e acompanhantes – nos considerávamos os primeiros moradores. Então, entregamos as regras na assembléia de inauguração. E explicamos: podemos fazer mudanças na asembléia semanal. Há um café da manhã às quartas em que se conversa sobre tudo: a semana, a comida. As regras passam por revoluções.
- Que tipo de "revolução"?
- Houve uma fase em que entrou um morador muito ansioso e a república inteira começou a comer demais. Os gastos aumentaram muito. Então, conversamos. Mostramos que o orçamento estouraria, e tudo foi reformulado. Agora, a coordenadora (Danielle Breton, psicóloga) refaz o cardápio junto com os moradores semanalmente e eles decidem. Introduzimos também a tarefa de fazer as compras. Os moradores devem ter noção do preço das coisas.
- A república não é só uma solução prática.
- Apesar de estar fora de qualquer esquema terapêutico, a república virou um acontecimento muito terapêutico. Provocou mudanças em todos os moradores. Eles trabalharam, nos primeiros meses, a separação da família. É uma das coisas mais complicadas para quem passou por crises psicóticas. Mas eles deram um passo. O grau de independência aumentou muito, não só em relação a moradia, mas no uso da cidade e em relação a tudo o que é necessário para que alguém se sinta um cidadão.
- Como se evita o clima de hospital?
- No começo, fazíamos um grande esforço para que os moradores não transformassem a república numa clínica. São pessoas que passaram anos fazendo tratamento, então é natural que, juntas, falem de problemas, busquem interpretações "psiquiatrizando" tudo. Aí entra a principal função do acompanhante terapêutico, que é a de não deixar que o ambiente, as relações e o grupo se "psicologizem"
- Mas como se consegue isso?
- Não é simples. Em vez de ficar falando sobre o significado das coisas, é melhor fazer. Em vez de tentar entender porque eu não consigo sair, vou pensar em quem eu poderia ligar para me acompanhar a algum lugar. Depois de um tempo, as terapias marcam as pessoas de um tal jeito que elas ficam funcionando assim sempre: tudo querem falar, interpretar e o barato da vida não é ficar falando, mas fazer.
- Qual é a formação do acompanhante?
- Em geral são psicólogos ou terapeutas ocupacionais que têm muita experiência no fazer, no desenvolvimento de ações. A gente dá uma formação através de cursos no instituto A Casa e de supervisões semanais com duas horas de duração.
-Qual é o perfil psiquiátrico do grupo?
- Os moradores passaram por desarranjos emocionais intensos, construíram realidades próprias, tiveram delírios e alucinações. Mas não há um perfil único. Seria empobrecedor fazer uma república só de paranóicos, por exemplo.
- A república funciona para qualquer um?
- Para pacientes "drogaditos" ou "ex-drogaditos" como patologia principal não seria uma alternativa. Porque é muito diferente, eles têm outro tipo de carência e toda uma esperteza com relação à vida. A junção seria ruim para algum dos lados.
- Os pacientes são da mesma classe social?
- São pelo menos de classe média. O custo não é baixo, o preço de um flat, em torno de US$ 900 por mês.
- Um ano depois, o que deu certo e o que mudou?
- Uma ocasião em que tivemos que repensar tudo foi quando dois moradores quiseram namorar. As regras originais proibíam, na verdade uma tentativa de proteger a individualidade dos moradores. Seis meses depois, eles questionaram isso: "Isto aqui é ou não uma república? Tem que namorar escondido? Como não posso namorar na minha casa?" Então, reconstruimos juntos regras norteadas pelo respeito mútuo.
- A saúde pública tem experiências parecidas?
- Há até pensões abrigadas ou moradias interessantes, mas o Estado sempre fornece tudo e alguém cuida, põe regras, limites e paternaliza. Mas há também bolsões de experimentação muito importantes. Participamos da criação de hospitais-dia no governo Montoro (1983-1987). A partir disso, houve altos e baixos, mas não se retrocedeu muito. Se não liquidamos de vez com os asilos, daqui a pouco, quem sabe? Mas a iniciativa privada é muito mais ágil.
- O que a internação tradicional tem de pior?
- O estigma. A partir dela você é um doente mental. Depois, para tirar isso é difícil. Você foi arrancado de um lugar e colocado em outro à revelia. Lá dentro, fica privado dos seus direitos de cidadão. A internação do jeito tradicional não é necessária. Vamos inventar outra coisa. É possível lidar com a loucura entendendo a loucura.
- O que é loucura?
- É a alternativa para alguém que ficou tão desesperado que não encontrou, no seu jeito de viver e de enxergar o mundo, nada que o fizesse aguentar o que estava sendo vivido. É uma alternativa inviável, se não for bem acompanhada. A loucura também pode ser uma alternativa criativa. Existe uma loucura que a gente pode reconhecer em cada ser humano. E há a loucura que está aí: é a possibilidade de se criar de uma forma muito pouco amarrada no que já existe. É a ebulição de algo novo, incontrolável, que a gente tem dentro da gente. A loucura não está só no doente mental.

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