São Paulo, quarta-feira, 9 de março de 1994
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Exposição mostra lado escultor de Picasso

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Pegue uma pintura cubista, recorte-a como se ela fosse uma dobradura de cartolina. As cores afinal não passam de indicações das diferenças nas perspectivas dos planos, que devem ser dobrados numa ou noutra direção. Reúna os diferentes planos conforme as indicações dadas pelas cores, até que você se veja diante de uma escultura. A pintura desaparecida ressurgirá então na sua forma mais completa." "Escultura é o melhor comentário que um pintor pode fazer sobre a sua pintura." Você acredita que essas afirmações sejam de Picasso? Você imaginaria que esse elogio da escultura tenha partido do maior pintor do século? Não se preocupe, muito mais gente arregalou os olhos de surpresa como você. E se maravilharam com a redescoberta de mais essa face do "enfant terrible" da arte moderna.
A idéia e a pesquisa foram dos professores John Golding, de Cambridge e Elizabeth Cowling, da Universidade de Edimburgo. Durante mais de quatro anos eles percorreram o mundo atrás de obras pouco conhecidas, boa parte nunca exposta até hoje, capazes de recuperar o imaginário escultórico de Picasso. O projeto era cotejar obras decisivas de pintura e escultura do mestre, evidenciando como umas influenciaram diretamente as outras, numa relação simbiótica, mediada pelo desenho e pelo modelo tridimensional em cartolina recortada. Picasso era muito mais cioso de suas esculturas que de suas pinturas e raramente as vendia ou presenteava. Grande parte acabou ficando em mãos dos seus herdeiros, daí a dificuldade de rastreá-las em coleções particulares e museus pelo mundo afora. Como resultado, mais de 200 obras foram reunidas, revelando a complexidade da imaginação física e espacial do grande Pablo.
A exposição "Picasso: escultor/pintor" começa com o momento crucial tanto para ele quanto para a arte moderna, 1906-1907, no qual ele inventa o processo visual depois chamado de cubismo, desafiando tudo o que até então era conhecido como arte. Foram decisivas para essa ruptura tanto as máscaras africanas encontradas no museu de arte étnica do Trocadero, quanto as estatuetas ibéricas arcaicas roubadas do Louvre. Inúmeros desenhos e estatuetas que Picasso começou a elaborar nesse momento revelam quase que passo a passo a intensa química de imagens e de soluções visuais que convergiriam para o impacto explosivo das "Demoiselles d'Avignon".
Na etapa seguinte, 1911-1912, a invenção das colagens simultaneamente à invenção das esculturas feitas a partir de objetos banais e refugo urbano. As colagens, incorporando bilhetes de metrô, fósforos, recortes de jornais e quejandos, eliminaram a distância entre a tela e a realidade cotidiana. As novas esculturas, como "A Guitarra" –recortes de folha de zinco, parafusos, quatro arames esticados, um cilindro cerrado de cano de pia–, extinguiram a carreira da escultura com a arte da decoração arquitetônica ou da glorificação dos poderosos. Nos anos 20 e 30 viria a monumentalidade do metal fundido agregado ao entulho industrial com destaque para a "Mulher num Jardim". Durante a guerra, sob estrita vigilância nazista, surge a arte casual, como a "Cabeça de Touro", um selim de bicicleta invertido, com um guidom por cima. Nos anos 50-60, as cerâmicas e peças de metal laminado, em associação com artesãos do Sul da França. No final de sua vida a fusão era completa: Picasso esculpia telas e pintava suas esculturas.

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