São Paulo, quarta-feira, 9 de março de 1994
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Mostra indica tendência do turismo artístico

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A exposição Picasso: escultor/pintor caracteriza uma nova tendência cultural que parece ter vindo para ficar, a do turismo artístico. Tal como a exposição de Matisse em Nova York em 1992 e a do Acervo Barnes em Paris em 1993, ela é anunciada como a exposição do ano. Alguns mais entusiásticos, como o jornal dominical "Sunday Times", vão além e fazem alarde da mostra como "a exposição da década".
Isso significa que um investimento maciço é feito para montar o evento numa das instituições da cidade, nesse caso a Galeria Tate, o qual não irá para nenhum outro lugar, de modo que quem quer que tenha interesse sério no assunto, terá de fazer o possível para visitar essa exposição em Londres, 1994, ou lamentar a perda para o resto da vida.
Afora aqueles que têm interesse profissional ou artístico pelo tema, há as legiões de centenas de milhares que afluem de todas as partes do mundo, atraídos pela raridade, pela beleza ou pelo prestígio do acontecimento.
As decorrências mais óbvias desse fenômeno são a intensificação do efeito de globalização da cultura, transfigurada em "cultura universal", com o consequente esvaziamento da densidade histórica e das raízes locais, que são a substância viva palpitando sob qualquer manifestação artística. Daí a ênfase dada à personalidade isolada de Picasso, à sua genialidade, originalidade, impulsividade, criatividade e excentricidades.
São evocadas suas sucessivas mulheres, seu apetite priápico, sua rivalidade com Matisse. Mas nada se fala das suas convicções anárquicas, as quais estão na raiz das opções que ele tomou. Nada se fala da sua relação visceral com Alfred Jarry e como os dois andavam armados na Paris sob estado de sítio. Nada sobre seu período de clandestinidade, quando envolvido com Apollinaire no roubo da Monalisa.
Durante a guerra, um oficial nazista foi ao estúdio onde Picasso vivia sob vigilância e, apontando o dedo ameaçador para a tela Guernica, lhe perguntou: "Foi você que fez isso?" e Picasso respondeu: "Não, foi você!" Acho que se ele reencarnasse nessa exposição e um visitante lhe fizesse a mesma pergunta, ouviria de novo a mesma fatídica resposta. (Nicolau Sevcenko)

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