São Paulo, sábado, 12 de março de 1994
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C'est la guerre!

CARLOS HEITOR CONY

Cést la guerre!
RIO DE JANEIRO – Minhas relações com a matemática nunca foram boas. Na realidade, foram e continuam péssimas –e já considero uma temeridade falar em matemática. A elementar aritmética sempre me foi refratária e me tem custado vexames pela vida afora, além de irrelevantes prejuízos nos trocos.
Não cheguei (ainda) a rolar pelas sarjetas como um cão sem olhos e sem dono –segundo me profetizou um professor irritado pela minha incapacidade em transpor as frações decimais. Daí minha admiração pelos economistas e contadores capazes de calcular a URV do novo plano que nos regerá a mesa, a cama e o bolso.
Ora, deu-se que no início do mês o rapaz que faz meus pagamentos pegou uma gripe as brabas e eu tive de enfrentar a fila de um banco –coisa que não fazia há anos. Para variar, a fila que me coube era enorme, movia-se lentamente e aproveitei a espera para somar meus débitos de luz, gás, telefone, condomínio e multa por estacionar em local impróprio. Obtido o resultado, ousei mais: preenchi o cheque com o total apurado.
Só então caí na real: já estava na vez de ser atendido e temi que a conta estivesse errada. Para mais ou para menos, não podia confiar na quantia que cuidadosamente expressei em cruzeiros ainda reais. Imaginei a reprovação dos companheiros que vinham atrás de mim: teria de fazer outro cheque e provocaria cóleras e caras amarradas.
A moça da caixa pegou as contas, momentaneamente desprezou o meu cheque. Digitou as quantias num mostrador esverdeado, apertou teclas, a maquininha emitia um sinal eletrônico a cada parcela –e finalmente a moça dignou-se a apanhar o cheque. Por espantosa coincidência, o número da maquininha era o mesmo que eu obtivera sem ajuda eletrônica.
Meti as contas já pagas no bolso, as mãos trêmulas, saí cambaleando do guichê. De longe olhei a maquininha como uma amiga, uma aliada. Ali estava alguma coisa que reconhecia o meu valor. Pensei em minha mãe, ela gostaria de me apreciar naquele momento de glória.
Euclides, Pitágoras, Descartes, Newton, Einstein –tremei em vossas covas! Custei, mas cheguei! Por ora, vou me exercitar nas contas de subtração. Depois será a guerra!

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